FERNÃO MENDES
PINTO:
o andarilho das
sete partidas
Adaptação da obra de Romeu Correia, «O
andarilho das sete partidas»
pela turma de 10º ano da Secção
Portuguesa do Liceu Internacional (2017-18)
ELENCO
Bonzo Maior
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Cyrille Cohen
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Catarina (filha de FMP)
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Estelle Alexandre
Victoria Gomes
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1º Chim
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Lena Gomes
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2º Chim
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Albertine Demaël
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Ermitão
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Inés Chevrier da Costa
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Felícia, a parteira
|
Adriana Carvalho
Malaurine Afonso
|
Fernão Mendes Pinto
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Antonin André
Charles Pastoret
Jason da Costa
Jean Demaël
Miguel Ramalhosa
Samuel Vieira
|
Fernão Mendes Pinto Jovem
|
Cyrille Cohen
|
Frade Mendicante
|
Alexandre Marques
|
Francisco de Andrade
|
Alexandre Marques
|
Francisco Xavier
|
Jean Demaël
|
Joana (filha de FMP)
|
Larissa Lopes
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Maria Correia de Brito (esposa de FMP)
|
Axelle Gonçalves
Clarisse Bernardino
Hellena Neto
Julie Carvalho
Larissa Lopes
Maëlle Glo
Mathilde Nunes
|
Mem Taborda
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Fábio Cruz
|
Menino
|
Cyrille Cohen
|
Noiva
|
Maëlle Glo
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Pêro Carriço (servo)
|
Giuliano Riccardi
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Rita (serva)
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Maria Rodrigues
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Simoa (serva)
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Albertine Demaël
Inès Chevrier da Costa
Lena Gomes
Louna Lopes
Maria Rodrigues
|
Tanoeiro
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Fábio da Silva
|
Telmo Pais
|
Enzo Martins
|
1º Velho
|
Fábio Cruz
|
2º Velho
|
Fábio da Silva
|
ATO 1
1° Quadro
(Pátio de casa rústica, no sítio do Pragal, arredores de
Almada. Manhã primaveril de 1562. Todo o espaço está ocupado por pipas, selhas
e instrumentos agrícolas. Roupas e trapos em desalinho, restos de mobília e uma
tela rota. Ervas e flores brotam do chão pouco pisado. No início, chegam-nos
ruídos de animais na quinta)
SIMOA (serva de 38 anos, gorda, entra com dois cestos cheios de livros grossos,
encadernados em pele. Vem derreada, coberta de suores. Berra pelo Caseiro)
- Pêro Carriço! Carriço!... Onde estás, maldito? (Põe os cestos no
chão, retira o lenço e abana-se) Carriço!... Pêro Carriço!...
PÊRO CARRIÇO (Servo de 65 anos, magro, envelhecido, transportado em balde de madeira,
entra Abespinhado) - Que gritos! Parece que há fogo no quintal!...
SIMOA - Onde estavas,
seu danado? Não me ouvias a chamar? Venho aos berros pelo caminho...!
PÊRO CARRIÇO (pousando
o balde) - Agarrado às tetas do animal! A trabalhar! Porquê? Não
estão a toda a hora, na vila, a berrar pelo leite e pelo trigo... e por
qualquer problema na quinta?
SIMOA - E daí? Que têm
as tuas obrigações a ver com a minha garganta seca de chamar por ti?
PÊRO CARRIÇO - Estava
agarrado às tetas da vaca, já disse! (Aponta para os cestos)
Que tens nesses cestos, Simoa?
SIMOA (retira
grossos livros, com certo orgulho) - Papéis! Papéis mui ricos e
forrados de belas peles! Coisas de grande qualidade!
PÊRO CARRIÇO (tenta mexer nos livros) - Pele de boi a enrolar papéis? Que
desperdício!
SIMOA (Joga-lhe uma palmada) - Cuidado! Tira as patas da mercadoria!
PÊRO CARRIÇO (ofendido)
- Que textura tão rica para os acessórios da minha égua! Que estragação!
SIMOA (desprezível) - Atreves-te a maldizer dos gostos do nosso amo?
Velho piolhoso! A invejar as peles para os acessórios da égua! (Resmunga) Olha a língua, Pêro Carriço e guarda respeito ao
nosso novo amo, Senhor Fernão Mendes Pinto!
PÊRO CARRIÇO - Pelinha de
animal para enrolar papéis! Sinceramente!
SIMOA - Eu é que
podia resmungar sobre estas mudanças que me estragam a vida! Da vila para o
Pragal e do Pragal para Almada! Este casamento da menina tem-me arrancado
lágrimas e suores!
PÊRO CARRIÇO (explode) - Casamento! Casamento! Porque não ficam os noivos na
casa da vila? Porque teimam em voltar para a quinta do Pragal?
SIMOA - Esta casa é
deles e tem de ficar limpa para receber os novos senhores.
PÊRO CARRIÇO - E tudo a
correr, tudo aos gritos? Maldito casamento! Agora já não têm medo das almas
penadas da casa do Pragal?
SIMOA - Esta casa e
esta quinta pertencem aos seus donos! A senhora dona Brites morreu aqui no
Pragal... e por isso o senhor e a menina mudaram-se para a vila. Agora com este
casamento tudo volta ao mesmo, e tu tens que ir dormir para o sótão da adega.
PÊRO CARRIÇO - A menina e o
fidalgo não têm medo da casa?
SIMOA - O senhor
Fernão Mendes Pinto é um valente cavaleiro que nada teme. Um homem dos antigos,
Pêro Carriço! (Trocista) Acabou a tua vida tranquila!...
PÊRO CARRIÇO - Tranquila?
Chamas isto tranquilo? Quem cava de sol a sol? Quem semeia e colhe todas as
frutices deste chão? Quem ficou aqui depois da morte da senhora dona Brites? E
de olhos bem abertos, ouviste, Simoa? De olhos bem abertos... e sem medo da
morta!...
SIMOA (persignando-se)
- Credo!
PÊRO CARRIÇO (divertido)
- Só de falar na graça da morta... (Grita a rir) Senhora
dona Brites Correia de Brito! Aparecei, senhora dona Brites!...
SIMOA - Cala essa
boca, filho do Demónio! Respeita quem te dá o pão! Guarda em oração a memória
dessa santa senhora!
PÊRO CARRIÇO (pega no balde e retoma a galhofa) - Fugistes desta casa como
se morasse cá o Diabo! Fugiram todos!... A senhora morreu ali no quarto, mal
saiu o enterro para a igreja da vila, fugiram... ninguém mais quis dormir no
Pragal!
SIMOA (corajosa)
- Mas vão regressar, Carriço ingrato! Os novos senhores vão voltar, e tu vais
limpar aquelas casas e portas e janelas! Até domingo tudo aqui deve ficar
impecável! Há que manter o prestígio das mulheres da limpeza destinadas a ficar
na história da humanidade, verdadeiro ex-libris
de Portugal!
PÊRO CARRIÇO - Raios me
partam se entendi com quem casou a Mariazinha! Só dei fé que casou na igreja da
vila com um fidalgo de Lisboa que veio das Índias.
SIMOA - Nada
conheces das ricas famílias que vivem em Almada!
PÊRO CARRIÇO - Eu não
conheço os fidalgos da vila?
SIMOA - És um bicho
metido na toca. Passam semanas que não vais a Almada. É mentira? Pêro Carriço,
foste alguma vez a Lisboa? A Lisboa, pelo mar, com aquelas ondinhas e os
turistas chineses…
PÊRO CARRIÇO (amedrontado)
- A Lisboa, não. Não quero ir a Lisboa!... Não me chamo Madona! (ouve-se excerto final do vídeo “Madona come to Almada” https://www.youtube.com/watch?v=re1GODJsHBI)
A capital vejo-a muito bem de longe!
SIMOA (na mó de cima) - Medinho do rio! Se fosses a Lisboa chegavas
ao Terreiro do Paço todo cagado!
PÊRO CARRIÇO (muda de assunto) - A casa do Pragal não pertence a esse
fidalgo!
SIMOA - Pertence
sim, meu querido!
PÊRO CARRIÇO - Pertence,
como?
SIMOA - O senhor
Fernão Mendes Pinto ao casar com a Mariazinha... ela entregou-lhe esta casa e a
quinta como dote seu. Percebeste agora? Ele é o novo senhor a quem deves
obediência. Mete na cabeça a graça do teu amigo: Senhor Fernão Mendes Pinto.
PÊRO CARRIÇO - Pinto?
Julguei que fosse galo! Maldito! Porque não foi o fidalgo para Lisboa ou para a
terra que o viu parir?
SIMOA - O senhor
Fernão Mendes Pinto é um valente cavaleiro de muitas letras, que entende
qualquer papel que lê. Escreve, escreve que se desunha. Andou por todos o mares
do mundo, venceu batalhas, serviu reis de bandas de lá do sol posto… e foi
amigo e companheiro de santinhos que se adoram nos altares. (Solene)
E se digo isto tudo, Pêro Carriço, é para que saibas a que senhor deveis
obediência e respeito.
PÊRO CARRIÇO (desalentado com lágrimas na garganta) - Há que anos vivo aqui
com os meus animais! Vou sair da minha casa? Maldito casamento, Simoa!
SIMOA (compadecida)
- Não acredites qu’o casamento me agrada. A menina está à minha guarda desde a
morte de sua mãe. Ao pai, o senhor Diogo Correia, embarcado nas naus da Índia,
muito pouco tempo lhe sobra para a vida da família. Lá embarcou para as ilhas
mal os noivos saíram da igreja. (Orgulhosa) Há anos que
sirvo esta família. Cheguei a esta casa, era uma criança de doze anos.
Lembras-te, Pêro Carriço? Hoje sou uma mulher de trinta anos…
PÊRO CARRIÇO (por
entre dentes) - Trinta? Eu dar-lhe-ia pelo menos 50!…
SIMOA - A tua tralha
tem de sair desta casa. O senhor Fernão Mendes Pinto já me disse que podes
dormir no sótão da adega. No domingo, depois da missa, os noivos vão regressar
ao Pragal.
PÊRO CARRIÇO - Abandonam a
casa da vila com uma vista tão maravilhosa?
SIMOA - Tens sete
dias para pintar estas paredes e pô-las a cheirar a alecrim, Pêro Carriço.
PÊRO CARRIÇO - E quem vai
dar ao braço a varrer e a limpar?
SIMOA - Amanhã vem a
Rita e mais duas mulheres da vila.
(Ouve-se fora de cena uma sineta tocada por
um Frade mendicante, que acaba por aparecer miseravelmente vestido, empunhando
um mealheiro com o retábulo do santo)
FRADE (numa
lenga-lenga) - Mandai vossos filhos e filhas e escravas, à santa
doutrina na igreja de Santa Maria do Castelo, por amor de Deus!
SIMOA (corre
a beijar o retábulo) - Salvai-o Deus, bom padre! (Procura
uma moeda que introduz no mealheiro) Seja pelas minhas alminhas.
PÊRO CARRIÇO (aproxima-se
do Frade, contrariado, e beija o retábulo) - Salve-o Deus… (e disfarça, sem dar
moeda. Pega no balde do leite, e faz menção de sair.)
FRADE (encara as moedas no mealheiro e diz) - Esmolas para a nossa
santa irmandade… (chocalha de novo).
PÊRO CARRIÇO (para,
geme) - Quereis dinheiro, padre? Pois se os senhores a quem sirvo
não me dão moedas há vários anos…
FRADE - Não tens
moeda nenhuma?
PÊRO CARRIÇO - Que saudades
do som do dinheiro! Irmão, fazei cantar de novo as vossas moedinhas.
(o Frade chocalha o medalheiro: uma, duas vezes…)
PÊRO CARRIÇO (encantado
com a mão atrás da orelha) - O melro não canta melhor!
SIMOA - Irmão, eu
dei por mim e por ele… Lançai-nos a vossa bênção.
(O Frade lança a bênção, retira-se, agitado a sineta)
SIMOA (abespinhada)
- A atirar para os ouvidos do irmãozinho que os senhores não pagam! Linguareiro
de má raça!
PÊRO CARRIÇO - Há tanto
tempo que não seguro uma moeda na mão!
SIMOA - E a tua
barriga não se enche com o pão e as frutas? E quantas galinhas desapareceram
sem saírem daqui? (Pêro tenta responder-lhe) E o porco que os
lobos comeram que te vi comendo no outro dia?
PÊRO CARRIÇO (fulo) - Mentirosa! Desbocada! Intriguista!
SIMOA - Quem te dá
trabalho e agasalho desde que para cá vieste? Não foram os pais da Mariazinha
que tiveram piedade de ti, perro tinhoso?
PÊRO CARRIÇO - Mas quem
cava este chão e planta sementes e o rega de suor? És tu com as tuas artes de
bruxa manhosa? Quem ceifa estes campos e colhe o trigo e os bate na eira? Quem
carrega os animais para o moleiro e do moleiro para a vila? Quem? Quem é o ser que
nunca descansa?
(Pouco antes começa a ouvir-se a vaca leiteira a mugir e
a égua a relinchar)
PÊRO CARRIÇO - Como sempre
estou a cuidar dos animais até já sabem chamar por mim!
FELÍCIA (parteira
de 45 anos, metediça, voz de falsete, entra com um saco) - Deus
esteja nesta casa!
SIMOA (que
não deu pela chegada dela, assusta-se) - Credo! Mãe Santíssima!
FELÍCIA (riso) - Meti-lhe medo, mulher?
SIMOA - Não a
esperava, tia Felícia! Entrou tão de repente, não a esperava… Até parecia…
FELÍCIA - A vitória
portuguesa do euro 2016?
SIMOA - Quem lhe
disse coisa tão estranha?!
FELÍCIA - Não vinha à
sua procura, comadre. Vou ao moleiro com este centeio para meu governo. Mas ao
ver a vossa casa não pude resistir à tentação de passar por aqui.
SIMOA - Grandes
mudanças vão ser feitas aqui!
FELÍCIA - Mudanças?
SIMOA - Não esteja
com essa carinha inocente!…
FELÍCIA - Simoa (Beija
dois dedos em cruz) Pela
minha salvação! Há meses que não estou em Almada! Estive na Aldeia Galega a
ajudar a minha cunhada. Cheguei esta manhã no barco do Janota. Mas que
aconteceu, não sei de nada?
SIMOA (solene)
- A minha menina casou-se.
FELÍCIA (num
espanto) - A dona Mariazinha? Não!
SIMOA - Sim! Sim!
FELÍCIA (pousa
o saco) - Casou? Quem foi o sortudo?
SIMOA - O senhor
Fernão Mendes Pinto.
FELÍCIA - Por Deus que
nunca ouvi falar dele!
PÊRO CARRIÇO (Enervado)
- É um Pinto que veio das Índias (sai com o balde de leite)
SIMOA - Podia estar
podre de rico se não fosse um coração aberto às dores do mundo. Mas a roda do
azar e da fortuna parece acompanhá-lo para todo o lado.
FELÍCIA - Ah comadre,
tantas conversas para acasalar a virtuosa menina... tantos segredos trocámos… (Curiosa)
Simoa, minha boa amiga: como se conheceram os noivos?
SIMOA - O pai da
minha menina conheceu o senhor Fernão Mendes Pinto no regresso para o reino.
Viveram ambos os tormentos da viagem, entenderam-se como dois irmãos. Dá gosto
ouvi-lo falar sobre as terras por onde andou e os povos selvagens que conheceu.
Venceu guerras, descobriu ilhas e até serviu reis das bandas de lá do mundo…
FELÍCIA - Estou de
boca aberta, Simoa! De boca aberta! Trata-se então de alguém que soube arranjar
boas cruzadas, não é verdade?
SIMOA - Para lhe ser
franca nem tudo eu conheço da vida do meu amo. Tudo quanto sei dele foi ouvido
nas conversas lá em casa. O senhor Diogo, pai da Mariazinha, coloca-o à altura
das estrelas. Fernão Mendes Pinto quando fala parece um sábio prior. As
palavras saem-lhe tão bonitas, encantam-nos tanto. Uma vez que o escutava,
fiquei tão presa às suas palavras que me esqueci de servir a ceia. Ele contava
coisas da China e dos chineses que não sabem comer com as mãos, como a gente.
Pegam nuns pauzinhos e atiram com o arroz para a boca…
FELÍCIA - Estás
gozando comigo, comadre?
SIMOA - Deus me
livre de destruir a nossa amizade! Nessas terras para lá do sol posto a vida
dos selvagens é mesmo às avessas da nossa. São povos sem religião entregues às
mil ciladas do Diabo.
FELÍCIA - Comer arroz
com dois pauzinhos! Nunca ouvi tal de tanta gente que andou pelas Índias!
SIMOA - O senhor Fernão Mendes Pinto navegou e
viveu para lá das Índias. O que ele viu e conheceu nunca se escutou nas falas
dos marinheiros das naus.
FELÍCIA (com
a mão sobre o peito) - A comadre não se vai zangar, se eu lhe disser
uma coisa?
SIMOA - Desabafe,
comadre, desabafe. Diga tudo! Bem sabe que não é fácil fazer-me medo.
FELÍCIA - Eu sou mais
velha uns invernos. Já sofri fome, terremotos e até pestes de levar tudo raso.
Já fiz muitos casamentos e ajudei a parir muitas crianças. Já vi desgostos de
todos os tamanhos…
SIMOA - Está a
pensar que o esposo da minha menina é um mentiroso?
FELÍCIA - Não fica
zangada comigo, pois não?
SIMOA - O senhor
Fernão Mendes chegou ao reino com poucos cruzados no baú de bordo… porque foi
amigo e companheiro de santinhos que se adoram nos altares… (Segreda-lhe)
Os quais lhe ficaram com grande porção de cabedais!...
FELÍCIA (sofre
uma tontura) - Não!
SIMOA - Sim! Sim!
FELÍCIA - Alcance-me
um banco para me sentar.
SIMOA (chega-lhe
um banco) - Quer uma gota de água? Está a tremer?
FELÍCIA (senta-se,
limpa suores, murmura) - Perdi a vista... Mas repita lá o que disse:
os santos desses lugares roubaram dinheiros ao vosso amo?
SIMOA (esforçando-se
por esclarecer) - Os santinhos não são desses lugares! Vão de cá
para as Índias! (Perde convicção). Comadre, eu talvez não me
tivesse explicado bem. Os nossos santos padres vão lá pregar as leis de Deus
Nosso Senhor e construir igrejas. Para tais obras são precisos muitos cruzados
entendeste? As casas de Deus não aparecem feitas por milagre, são os pedreiros
e os carpinteiros que as põem de pé. E toda essa gente ganha dinheiro… não vive
do ar!…
FELÍCIA - Vosso amo
foi roubado pelos santinhos que vão de cá do reino? (Benze-se)
Continuo a não entender uma heresia tamanha!
SIMOA (a
irritar-se) - A senhora está doida? Quem falou em roubar?
FELÍCIA - Foi o que eu
ouvi.
SIMOA -Eu disse: os
santinhos ficaram com grande parte da sua fortuna.
FELÍCIA - Ficar e não
entregar não é o mesmo que…? (Mímica expressiva)
SIMOA - Não! Por
Deus! No caso do meu amo, não! Porque ele pertenceu durante uns tempos à mesma
Companhia de Jesus!
FELÍCIA (maior
pasmo; num grito) - É
padre!… É padre!!! Que Deus ilumine esta terra! (Recua, a benzer-se)
Esse Fernão Mendes Pinto é padre e atreve-se a tomar mulher diante do altar?!
SIMOA - A comadre
está a baralhar tudo! Oh mulher de Deus! Esteja atenta, e limpe os ouvidos.
FELÍCIA - Pobre
menina! Desgraçada! Concubina dum padre! Concubina dum mentiroso!…
SIMOA - Fechai essa
boca, mulher! Travai essa língua venenosa! (Felícia foge). Ela não
compreendeu o que eu disse. Embrulhou tudo… e falou em heresia!… (Uma dúvida terrível) Ou fui eu que não arrumei bem as palavras sobre o senhor Fernão
Mendes Pinto?
(Mutação)
ATO I
2º Quadro
(Pobre casa de camponeses. Grande sala. À esquerda, ficam
o forno e a lareira. Na parede estão penduradas panelas e numa estante está
exposta loiça de barro. Uma tulha para amassar a farinha. No fundo, porta de
entrada; na direita, porta que dá para o quarto. Larga mesa de pinho e alguns
bancos. A um canto, duas cadeiras negras. Nos móveis, candeias. Grande
crucifixo na parede frontal. Fim de tarde de Verão. Pôr de sol. Estão em cena
Simoa e Rita, as duas servas de 18 e 15 anos; e a dona, Maria Correia de Brito,
de 18 anos. Maria cose junto da mesa e as servas amassam o pão perto da
chaminé. )
SIMOA (para a Rita) Mexe-te, Rita! Por
este andar só amanhã metemos o pão no forno! (Vaidosa) Na tua
idade, nenhuma mulher me passava adiante na lida da casa! Trabalhos rijos havia
no tempo da dona Brites!
RITA (com medo) - Nossa Senhora! Valei-me,
Nossa Senhora!
SIMOA - O que te
deu, rapariga?
RITA (gemendo) - É que… tenho medo da senhora Brites…!!
MARIA - Parai com o
nome da minha mãe! Nesta casa ela só deve ser recordada nas nossas orações!
SIMOA - Perdoai-me,
menina. Prometo ser mais cautelosa… (Benzendo-se)
Que a alma da vossa santa mãe repouse no eterno descanso.
MARIA - Parai de
mencioná-la!
(Silêncio. Ouvem-se cães ladrar.)
MARIA - O Pêro
Carriço não prendeu os cães? Quem nos visita não pode ser mordido. Basta que os
soltemos de noite contra os lobos e ladrões.
SIMOA - Os lobos
malvados! No último inverno comeram-nos muitos animais.
MARIA - Os lobos
precisam de boa batida. O senhor Fernão Mendes Pinto em breve vai procurá-los
na companhia de outros paroquianos deste lugar do Pragal.
SIMOA - Menina,
autorizais a minha curiosidade sobre a vida do senhor?
MARIA (saudosa) - Se quereis saber onde
ele está… Agora está em Lisboa, na praça do Pelourinho Velho, a escrever. Ele é
um notário muito procurado por aqueles que precisam de boas letras:
requerimentos, orações fúnebres, cartas de amor, sermões para serem ditos nas
igrejas…
SIMOA - E toda essa
sabedoria lhe vem daquela rica cabecinha?
MARIA - O meu esposo
pega na pena, molha na tinta e desenha no papel esta arte que é a escrita.
SIMOA - Que belo
dom! E raros são os que neste mundo sabem ler e escrever. (Intencional)
A minha menina também não é muito boa a escrever…
MARIA (tosse seca) - O meu pai e os meus irmãos, o Afonso e o
Pedro, sabiam escrever muito bem. Típico dos homens da família. A nós,
mulheres, cabe sermos virtuosas, boas esposas e mães.
SIMOA - O senhor
Pedro e o senhor Afonso… Tão saudosos moços ceifados pela peste…
(Pausa)
MARIA - Agora é a
minha vez de vos perguntar uma coisa, querida ama…
SIMOA - O quê,
menina?
MARIA (hábil) - Esta manhã… quando o senhor Fernão Mendes Pinto
abalou para o porto de Cacilhas, tu quiseste saber qualquer coisa. Porque
escolheste a língua venenosa?
SIMOA (chocada) - Oh, menina, não deveis falar desse modo na
presença de estranhos!
MARIA - A Rita não é
uma estranha. Está ao nosso serviço e esperamos que fique para sempre. (Um tempo) Que quereis saber sobre o meu esposo?
SIMOA - Nada, nada…
MARIA - Fala. Não
importa a presença da Rita.
SIMOA (cheia de hesitações) - Um homem que foi padre … pode
casar-se?
MARIA - Estais
louca, mulher?! A Igreja não permite tamanha heresia!
SIMOA (perplexa, volta-se para companheira do celeiro, e descarrega os nervos)
- Mexe essas mãos, minha lesma! O senhor está de volta e ainda não temos o pão
no forno!
MARIA - Onde
ouvistes tal sacrilégio, Simoa?
SIMOA - Perdoai-me!
Dias há em que uma pobre mulher não atina com os seus próprios pensamentos.
MARIA (interrompe a costura e acerca-se da serva) - Simoa. (Não há resposta) Simoa?
SIMOA (interrompe a faina e encara-a, nervosa) - Menina…?
MARIA - Qual a graça
desse padre de que falais?
SIMOA - A graça?
MARIA (decidida) - Sim a graça, o nome? Como é que ele se chama? (Pausa) Eu satisfaço a tua curiosidade…
O senhor Fernão Mendes Pinto trabalhou para a companhia de Jesus, mas nunca foi
ordenado Padre… Entregou grande parte da sua riqueza aos Jesuítas, que tanto o
respeitam ainda. A primeira igreja construída no Japão foi paga pelo meu
marido… Chorais agora? Parai essas lágrimas! O meu marido não deve tardar… e eu
não quero que ele tenha mais problemas, já sofreu muito nas Índias!
SIMOA - Eu prometo
ser melhor serva diante do vosso esposo. Foi tudo tão rápido e estranho: as visitas
do senhor à casa da vila, as suas histórias das terras e dos selvagens da banda
de lá do sol, os martírios sofridos por aquela alminha cristã… Que esposo o
vosso, menina, que até os padres e os santos lhe pedem dinheiro!
MARIA - Os velhos
aconselham que sejamos sabedores e justos. Dar à língua sem parar e repetir
tudo o que se ouve acaba por ser calúnia… maledicência… grandes pecados
mortais!
SIMOA - Eu juro! Eu
juro pelas Cinco Chagas de Deus Nosso Senhor expulsar da minha doida cabeça
todas essas ciladas do Diabo! (Cruza os dedos e beija-os
várias vezes em sinal da jura que acaba de pronunciar)
RITA (num grito) - Tia Simoa! Tia Simoa!
SIMOA - O que
queres?
RITA (espantada) - O pão está a crescer…
(Simoa retira a mão cheia de pedaços de massa de farinha
que coloca sobre a mesa. Divide em quatro grandes “bolos”. Depois, Rita coloca
os pães sobre a pá que mete na boca do forno. Pêro Carriço aparece com um
braçado de lenha)
PÊRO CARRIÇO (dirige-se para a dona de casa, e anuncia) - Minha senhora,
está lá fora um homem estranho que gostaria de ser recebido por vosso esposo.
MARIA - O senhor não
está. Ainda não veio de Lisboa.
PÊRO CARRIÇO - Foi o que
lhe disse. Mas o homem é teimoso. Não quer ir embora sem ser recebido por gente
desta casa.
MARIA - Disseste um
homem estranho?
PÊRO CARRIÇO - Vem ruim de
roupas e de pés… mas não perdeu os ares de fidalgo!
MARIA - Fidalgo?
PÊRO CARRIÇO (engasga-se) - Parece…
MARIA - E cavaleiro?
PÊRO CARRIÇO - Se teve
cavalo creio que já o comeu… tão magro e esfomeado… Mando-o entrar?
MARIA (hesitação) - Simoa, limpai essas mãos e alcançai-me uma
cadeira dessas. (Para o campónio) Que entre, que entre.
Mas ficai no pátio perto dos cães. Se eu gritar, soltai logo os animais.
(Pêro Carriço retira-se. Simoa limpa as mãos e os braços
e dirige-se para os cadeirões. Pêro Carriço introduz o visitante que é alto,
magríssimo, ridículo, de 50 anos, mas com ares de fidalguia.)
MEM TABORDA (numa exagerada vénia, anuncia-se) - Mem
Taborda, servidor de el-rei nas Índias.
(A dona da casa encara-o, dececionada, e faz menção à
serva para que recue com a cadeira. Esta volta para o canto e repõe o móvel no
chão, com estrondo. O visitante pula, assustado. Simoa regressa ao pão.)
MARIA - Procurais o
senhor meu esposo? Não está. Que desejais?
MEM TABORDA - Senhora, o
vosso servo já me anunciou a ausência do vosso esposo. Perdoai a teimosia de
ficar… Mas sinto-me vazio de forças, senhora…
MARIA (inquieta) - Mas que desejais desta casa?
MEM TABORDA - Falar com o
vosso esposo.
MARIA - Fernão
Mendes embarcou de manhã cedo para Lisboa.
MEM TABORDA - Permitis que
fique debaixo dos vossos tetos, esperando?
MARIA - Senhor…
MEM TABORDA (numa vénia) - Mem Taborda, servidor de el-rei.
MARIA - Senhor Mem
Taborda, somos nesta casa e nesta hora três mulheres sem proteção…
MEM TABORDA - Duvidais da
minha honra, senhora? Ofendeis-me com tal suspeita! (Retira a espada e
tenta entregá-la) Aqui tendes o meu ferro como prova de que venho em
bem!
MARIA - Chegai para
lá a vossa espada!
MEM TABORDA (recolhe a espada) - Quinze anos de trabalhos e sofrimentos
nas partes da Índia a lutar contra toda a casta de infiéis. O meu sangue regou
terras e mares cheios de mouros. Naufraguei e vi morrer centenas, milhares, de
companheiros… (soluça) Não me mandais sentar? Estou
tão cansado…
MARIA - Simoa,
alcançai um banco a esse senhor.
(A serva pega num banco de pinho que põe junto da mesa. O
visitante senta-se, sem forças. Momento sem palavras.)
MARIA - Rita, pedi a
Pêro Carriço que vos dê a fruta caída para dar aos porcos e às galinhas.
(A rapariga encara o visitante e sai a correr)
MEM TABORDA (suspira) - Abençoado o fogo que coze o bendito pão!
MARIA - Tendes
família?
MEM TABORDA - A peste
levou-me mulher e filha. Tive um irmão em Alenquer, mas já faleceu.
SIMOA (benzendo-se) - Que descansem na paz do senhor!
MEM TABORDA - Amen.
MARIA - Amen.
SIMOA - E nessas
terras por onde andastes não enriquecestes?
MEM TABORDA (sarcástico) - Enriquecer? A sorte e as riquezas sempre
tiveram asas para me fugir! As recompensas iam todas para os outros! Patifes!
Ladrões! (Bate com o punho na mesa, fazendo estremecer as duas
mulheres. Depois, mais calmo) Perdoai o meu comportamento.
(As duas mulheres entreolham-se, junto do forno. Um
tempo. O visitante abre a boca, sequioso.)
MEM TABORDA - Minha boa
senhora, não quereis matar-me a sede com um copo de vinho? Nas minhas pobres
tripas só entraram hoje água e pão duro…
MARIA (a Simoa) - Dai um pouco de vinho. (Para o visitante)
Quereis pão com linguiça?
MEM TABORDA - Senhora,
perguntais a um cego se quer ver?
(A serva executa as ordens da senhora: verte vinho num
copo de barro, corta um naco de pão e junta-lhe linguiça. Mem Taborda devora o
pão com voracidade; engasga-se e tosse. Momento comovente.)
MARIA (comovida) - Dissestes que andastes pela Índia dez anos?
MEM TABORDA - Quinze…
quinze anos ao serviço de Deus e d'el-rei! Mas para quê tanto sangue, mas para
quê tantos sofrimentos?!
MARIA - Onde
conhecestes Fernão Mendes Pinto?
MEM TABORDA - Estivemos em
Goa pela mesma altura. Vosso esposo vinha riquíssimo dos mares da China. Dava
gosto ver caminhar tão poderoso embaixador e comerciante! (Lambe a ponta dos
dedos) Esta linguiça foi feita pelos anjos! Será pedir muito… só
mais um naquinho?
MARIA (concede) - Simoa, serve.
(A serva corta mais pão e linguiça, que entrega a Mem
Taborda)
SIMOA - Deito mais
vinho?
MEM TABORDA (ergue o copo) - É sangue de Deus Nosso Senhor! (Simoa serve)
MARIA - Quando é que
vistes Fernão Mendes em Goa?
MEM TABORDA - Há uns nove
ou dez anos, talvez em 1554…
MARIA - Meu esposo
só regressou para o reino quatro anos depois. Teve ainda que desempenhar
missões na China e no Japão.
MEM TABORDA - Mais
negócios na China? Que país! Nesse reino compra-se por três e vende-se por
trinta! Excelente para um homem ficar podre de rico!
MARIA - Só que
Fernão Mendes Pinto regressou pobre ao reino...
MEM TABORDA (muito espantado) - Vosso esposo perdeu as riquezas?! Não acredito!
(Cães ladram.)
SIMOA - Quem será?
PÊRO CARRIÇO (entra na sala a correr) - O senhor chegou à quinta!
(Mem Taborda levanta-se e sacode as
migalhas. Fernão Mendes Pinto entra.)
FERNÃO MENDES (retira o casaco do ombro) - Deus seja louvado nesta casa! (Maria dirige-se ao marido e beija-o. Fernão Mendes vê o visitante.)
Quem é?
MARIA (baixo) - Teimou em esperar por vós. Diz que vos conhece.
MEM TABORDA - Tenho a
honra de estar na presença do senhor embaixador Fernão Mendes Pinto? (Vénia) Mem Taborda, servidor de Deus e de el-rei nas partes
da Índia!
FERNÃO MENDES
PINTO - Sim, sou eu. Mas nesta casa já não podeis encontrar o embaixador, nem o
comerciante, nem o guerreiro. Nos dias que me restam quero paz e quietação. (Retira do alforge papel, dois livros, o frasco da tinta e a pena de
pato, colocando tudo sobre a prateleira) Só gostava de ter notícias
da Santa Casa da Misericórdia, ou da albergaria de São Lázaro ou do almoxarife,
mas nada! (virando-se para Mem Taborda) Mas digai lá…
que quereis de mim?
MEM TABORDA - Meu senhor,
fui um servidor como vós da Companhia de Jesus, para a qual gastei os meus
jovens anos de vida… Desembarquei no reino há dois anos, depois de ter
combatido e regado as terras mouras de meu sangue generoso… E agora, ando à
procura de hospitalidade. Há já cinco dias que tenho andado a implorar socorro
aos fidalgos e às casas ricas… Alguns dão-me pão e uma gotinha de água e outros
- Deus seja louvado!- permitem que eu durma na estrebaria com as bestas. Tinha
a esperança de que vós, senhor Fernão Mendes, que conheci rico em Goa, me
pudesses...
FERNÃO MENDES
PINTO (aparte) - Bons tempos…
MEM TABORDA - Perdoai-me,
senhor, por vir tão tarde em casa morada, mas a vossa casa é a minha única
salvação. Nunca comi tão bem! Bondosa senhora tendes como esposa, Fernão
Mendes! Que Deus Nosso Senhor vos dê os filhos que mereceis!
FERNÃO MENDES
PINTO - Contrariamente ao que pensais, o meu atestado de bons serviços não
facilitou em nada a minha vida. Escrever é o meu ganha-pão. Não vos posso
valer, senhor…
MEM TABORDA - Mem Taborda!
FERNÃO MENDES
PINTO - Senhor Mem Taborda. A visita acaba aqui.
MEM TABORDA: E que foi feito
do vosso ouro e dos vossos escravos? Oh, tinha tanta fé na vossa ajuda!
FERNÃO MENDES
PINTO (a Pêro Carriço) - Põe fruta no saco deste
homem.
MEM TABORDA (põe-se de joelhos) - Por favor! Tendes uma casa, uma mulher
bonita e moça e pão a cozer no forno!
FERNÃO MENDES
PINTO - Boa viagem!
MEM TABORDA (a gritar) - Tantos anos ao serviço de Deus e este é o meu
pagamento! Tenho um papel de bons serviços, e acabo os meus dias a pedir
esmola... Estive no segundo cerco de Diu! Nunca fiz pirataria como alguns que
voltaram ricos!
FERNÃO MENDES
PINTO - Trouxemos todos queixas e cicatrizes da Índia! A Santa casa da vila tem
vários lugares para forasteiros. Aguardai com resignação a vossa vez. Ide em
paz!
(Maria fecha a porta e vai abraçar o seu marido.)
MARIA - Quem é este
homem?
(Luz baixa. Escuro e fim.)
ATO I
3.° QUADRO
(Noite de verão e de luar. O forno e a lareira estão
apagados. Uma candeia de azeite arde sobre a mesa, em cujo tampo se vê papel,
tinteiro de metal e alguns livros. Cena deserta por momentos. As cigarras
cantam na quinta)
MARIA (entra com um castiçal com uma vela. Estranha a ausência do marido)
- Fernão... Fernão Mendes! Onde estás meu esposo? (ergue a luz e
observa a sala; mas esbarra com o escritor que, entretanto, regressou)
Santo Nome de Jesus!
FERNÃO MENDES (que
fora lá dentro vestir um hábito franciscano, estranha a reação da mulher) - Maria!
Maria!
MARIA (recua, assustada) - Nunca vos vi assim tão trajado!
FERNÃO MENDES (abana o hábito, sorrindo) - O Calor minha esposa, o calor
minha esposa! Porquê tanto espanto?
MARIA - Onde arranjastes
essa roupa?
FERNÃO MENDES - Estava baú
entre as minhas recordações.
MARIA - Bem sabeis
que não é meu costume mexer nas vossas coisas.
FERNÃO MENDES - (beija-a com ternura) Qualquer dia teremos uma conversa sobre
a nossa vida passada. Sim, minha esposa? Quando vos beijo sinto o bater
apressado do vosso coração…
MARIA - (inquieta) Fernão... os nossos empregados estão lá fora a
escolher fruta e podem aparecer... Tenho medo que nos vejam abraçados!
(A sombra de ambos desenha-se enorme numa parede da sala)
FERNÃO MENDES - É pecado o
marido beijar a esposa?
MARIA - Pecado não,
meu senhor. Sabeis que sou vossa, inteiramente vossa. Mas podemos ir para
dentro do quarto e fechar a porta... aqui não me sinto à vontade.
FERNÃO MENDES (afasta-se dela, preocupado) - Esta noite tenho muito que
escrever. Um sermão e um elogio fúnebre. Amanhã, em Lisboa, tenho que entregar
os trabalhos.
MARIA - Esta noite
está tão formosa (toca-lhe o joelho)
FERNÃO MENDES - Esta noite
passo-a a escrever. O sermão é pra ser dito por um bispo a quem devo provas de
respeito.
MARIA (contrariada) - Esse tal bispo não sabe escrever?
FERNÃO MENDES - Sua
eminência mandou-me pedir uma escrita formosa. Uma escrita formosa…(senta-se e prepara a pena para escrever)
MARIA - Conviveis
com gente rica e poderosa, Fernão Mendes, e ninguém vos recompensa pelos vossos
trabalhos e serviços. Todo mundo vos procura, todos vos pedem palavras e
escritas... e nada recebeis nas vossas
sábias mãos. Tantas promessas, tantas falas galantes vossas... e um homem como
vós na praça pública a fazer cópias e escritas apenas por 40 réis.
FERNÃO MENDES - Não desespero minha esposa . Na Santa Casa da Misericórdia talvez consiga um trabalho.
MARIA - O senhor provedor Dom João de Abranches é rara a semana em que não vos manda chamar. Antes de nos casarmos, por saberem da nossa amizade com o Santo Padre Francisco Xavier, vinham a minha casa procurar o vosso paradeiro (Noutro tom). Quando voltar o Inverno continuará a atravessar o rio pra fazer esses trabalhos em Lisboa? O frio enche-vos o corpo de dor, mal podeis caminhar entre o Pragal e Almada.
FERNÃO MENDES - Não me recordeis esses tempos de frio quando este calor abençoado me regala os ossos! (abana o hábito)
MARIA (divaga pela sala) - Está uma linda noite de verão! O luar enche de luz a nossa quinta. Oh, como gostaria de estar à beira da rocha a aproveitar a brisa do vento! Ver as naus e as grandes luzes de Lisboa banhada de luar!
FERNÃO MENDES (molha o aparo na tinta) - Ao trabalho! (repete com ironia
o que escreve) Irmãos meus em Cristo nosso senhor…
FERNÃO MENDES - Maria! Eu não tenho a vossa idade! Você é uma moça de dezoito anos e eu um homem de cinquenta e três anos cheios de trabalhos, lutas e sofrimentos. Os meus tempos das Índias gastaram muito de mim, do meu rigor, da minha saúde. A morte, por mim passou bem perto vezes sem conto.
MARIA - Todos esses
tormentos acabaram para vós, querido, estamos casados e somos felizes.
Recebestes esta casa e a quinta como dote. Esquecei os tormentos do passado.
FERNÃO MENDES - Não é só no corpo que tenho cicatrizes… No meu sangue na minha alma há marcas dolorosas.
MARIA - Mas estamos no Verão! No Verão que faz rejuvenescer e que vos anima! Afaste as más recordações!
FERNÃO MENDES - As minhas recordações, as boas e as más. Hão de morrer comigo. Oh, como eu gostaria ainda de escrever a minha história vivida nessas terras longínquas… A minha peregrinação…
UMA VOZ (com vários ecos, repercute-se) - A minha peregrinação… peregrinação… PEREGRINAÇÃO!
MARIA (inquieta) - Que tendes, querido?
FERNÃO MENDES - Estou bem.
Estou bem.
MARIA - Vosso corpo
lembra-me um cristo retalhado de tormentos pelas mãos desses selvagens! Bonita
a vossa vida, Fernão Mendes, fostes dez vezes preso e quinze vezes vendido?
FERNÃO MENDES (hesita) - Treze vezes preso e dezasseis vendido. (numa dúvida) Ou será
que foram… catorze preso e dezassete vendido?...
MARIA - Meu esposo
exposto no mercado a ouvir o pregão infame de quem dá mais. (afaga-o) Este pobre corpo coitado sem piedade. (revoltada) Foi a paga desses selvagens a tantos sacrifícios
dos portugueses para lhes ensinarem as leis de Deus nosso senhor? Ingratos
povos visitantes! Quando me lembro da tortura do chicote… eles batem com
correias?
FERNÃO MENDES - Varas de bambu. E cortam os polegares, e as orelhas e o nariz…
MARIA - Que horror! (sobe as mãos às orelhas e ao nariz, tateia) Que sustos
padecestes! Graças a Deus regressastes inteiro!
FERNÃO MENDES - Perdi um
osso nas minhas lutas.
MARIA - Um osso?
Qual?
FERNÃO MENDES (risonho) - Adivinhai, minha esposa…
(Maria apalpa-lhe o peito, os braços, provocando-lhe
cócegas)
FERNÃO MENDES - Estai
quieta... Estai quieta... (noutro tom) olhai
que eu vos mando ser açoitada por Pêro Carriço!...
MARIA - O Pêro
Carriço… o Pêro Carriço… esperam-nos grandes trabalhos na vinha. Que ajuda é a
vossa, meu senhor?
FERNÃO MENDES (divertido) - Quereis fazer de mim um agricultor? Sei pisar
uvas.
MARIA (senta-se no colo dele) - Em setembro ainda há lume no céu e
o vosso corpo não se magoa na apanha da uva. Concordais comigo, senhor
embaixador?
FERNÃO MENDES - Parecíeis
agora aquele Mem Taborda que nos apareceu há dias. (Repete)
Embaixador e comerciante…
MARIA - E à saída,
chamou-vos pirata. Pirata! Ofendeu-nos, aquele perro!
FERNÃO MENDES - É um
destroço humano, um desgraçado… dos muitos à deriva pelo reino. Não podemos dar
crédito à mentira e ao maldizer. (Afaga-a, beija-a) A
cabecinha da minha esposa é um fermento… está sempre a fantasiar…
MARIA (arrebatada) - Não escrevas agora o sermão! Vamos para o
quarto! Vamos abrir as portas do paraíso…
(Simoa, Rita e o Pêro Carriço entram, despreocupados. Ao
esbarrar com o frade abraçado à senhora, gritam de espanto)
SIMOA (põe
as mãos e cai de joelhos) - Jesus e Maria santíssima!
(Rita imita-a, trémula)
PÊRO CARRIÇO (tapa os olhos e grita) - Eu não vi nada! Eu não vi nada!
Nada! Nada!
FERNÃO MENDES (levanta-se e impõe autoridade) - Não conheceis o vosso amo? Não sabeis quem escreve todas as noites nesta mesa?
(As duas servas erguem-se desorientadas)
PÊRO CARRIÇO (retira as mãos dos olhos e repete) - Pela minha saúdinha que
não vi nada!
FERNÃO MENDES - Velho
pateta! Velha enganadora! Não conheceis o vosso amo?
SIMOA - Oh meu
senhor, mil perdões vos peço! Reconheço-vos muito bem, meu senhor! Mas como
estáveis metido nessa roupeta… acreditei noutro pecador!
FERNÃO MENDES - Quereis
dizer, velha parva, que eu sou pecador? Que pecados são os meus, não mo dizeis?
SIMOA (chora em alta gritaria, ofendida) - Eu não sou velha! Só
tenho quarenta anos! E estou inteirinha, graças a Deus!
MARIA - Parece uma
casa de loucos! O senhor tem calor e vestiu outra roupa… tanta doideira!
Sossegai e dizei ao que vêm!
(Os servos entreolham-se, serenam)
PÊRO CARRIÇO (tosse) - A fruta está apartada… Fruta para venda no mercado
e fruta para dar aos animais…
SIMOA - Meu senhor …
só viemos pela fruta…
FERNÃO MENDES (irritado) - Os trabalhos da quinta não são de minha conta! A
vós essas tarefas! (alheia-se) Eu preciso
de paz e quietação.
MARIA (para o pessoal) - Acompanhai-me (e saem, falando em voz baixa)
FERNÃO MENDES (Senta-se e relê o que escreveu) - Irmãos meus em Cristo
nosso Senhor…”Assim como um bom pai folga quando vê que lhe convidam os filhos,
assim folga este Senhor, pai verdadeiro de todos, quando com zelo de caridade…
quando com zelo de caridade… nos comunicamos uns com os outros.” (Abandona a pena,
contrariado) Estou sem ideias, tenho a cabeça vazia… o coração tão
distante…
VOZ DE MARIA - “Estamos
casados e somos felizes. Recebeste esta casa e a quinta como meu dote. Esquecei
os tormentos do passado.”
VOZ DE FERNÃO
MENDES - “Não é só no meu corpo que tenho cicatrizes… cicatrizes… cicatrizes… No
meu sangue, na minha alma há marcas dolorosas… da minha peregrinação…
Peregrinação… marcas dolorosas… dolorosas…
(Ruído de vozes, gritos, lâminas que se chocam. O vento e
o mar enraivecido também se escutam, assim como a presença de raios e trovões.
Pouco depois, tudo calmo, ao mesmo tempo que as paredes da sala recebem a
projeção de uma paisagem oriental. Um círculo de luz estende-se ao tampo de uma
arca, que se abre ao som de um arpejo. E aparece o Menino, chinês de 12 anos,
que ri e folheia papéis)
MENINO - Português!
Não te esqueças de mim, português ! Se não me fizeres aparecer na tua história…
Rogo-te uma praga, maldito!
FERNÃO MENDES - Há que anos
nos encontrámos, Menino! Eras uma criança muito sábia…
MENINO - Tantas
lágrimas vertemos pela tua maldade!
VOZ DE FERNÃO
MENDES - “Depois de estarmos todos recolhidos, e seguros de que os chineses não
nos podiam fazer mal, pusemo-nos a comer muito descansadamente o jantar, que um
velho tinha preparado, o qual consistia em dois tachos de arroz com pato e
toucinho picado que nos soube então muito bem, dado o apetite que todos
tínhamos.”
MENINO - Mas não foi
para nos tirares o arroz que tu e os outros voaram sobre as águas do mar! (Agita papéis ) Foi para nos soprar o fogo da guerra e da
peste, roubando tudo ao alcance das vossas criminosas mãos! Tens aqui nos teus
papéis muitas histórias de sangue e de lágrimas… Papéis que vieram contigo na
tua viagem de regresso…
FERNÃO MENDES - Menino sábio
que me atormentas… que não me sais do pensamento… ( Dolorosamente)
Ao certo não sei bem já se tu existes ou se és fruto da minha imaginação!...
MENINO - Português,
eu sou o teu castigo, o teu arrependimento! Vais contar a tua história… e a
minha, não é verdade?
FERNÃO MENDES - Uma criança
não fala como tu. As tuas palavras certeiras e cruéis só podem nascer da minha
escrita…
MENINO - Eu estou
vivo na tua cabeça…
FERNÃO MENDES - De dia para
dia, atormentam a minha imaginação… A tua fala martela a minha cabeça…
MENINO - “Sabeis
porque vo-lo digo? Porque vos vi rezar a Deus, depois de fartos, com as mãos
levantadas e com os beiços azeitados, como homens a quem parece que basta mostrar
os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendo que o senhor da
mão poderosa não nos obriga tanto a agitar com os beiços, quando nos proíbe
tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves,
como depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo da sua divina justiça.”
FERNÃO MENDES - ( abaixa o rosto sobre as mãos, atormentado, e repete) Esta noite, não… Não me atormenteis..
(As paredes da sala perdem a
paisagem. Uma sombra oculta a figura do Menino. A arca fecha-se )
FERNÃO MENDES (Relê o início do sermão) “Irmãos meus em Cristo Nosso
Senhor: Assim com um bom pai folga quando vê que lhe convidam os filhos, assim
folga este Senhor, pai verdadeiro de todos, quando com zelo de caridade nos
comunicamos uns com os outros.”
( Mutação)
ATO I
4º Quadro
(O Inverno mudou a vida na quinta e na residência. O
vento sopra lá fora. A lareira está acesa Maria confecciona roupas para bebé,
pois está grávida de oitos meses.)
MARIA (com o olhar no fogo, chama pelas servas) - Simoa! (Depois) Rita! Onde param estas mulheres?
(Entra Felicia, a parteira. Sacode o negro capote e observa a dona da casa)
MARIA - Quando preciso desta gente, sempre desaparecem! (Volta-se e esbarra com a parteira) Ah! Tia Felícia!
FELÍCIA (com voz de falsete, trémula) - Ai que frio, minha filha!
MARIA - Chegai-vos para a lareira. Não fiqueis na entrada.
( Felícia aceita o convite e aproxima-se da lareira)
MARIA - Que é feito de vós, tia Felícia? Por onde tendes andado? (Noutro tom) Procurais a Simoa?
FELÍCIA - Qual Simoa? Estava com muitas saudades de vós! É a primeira vez que vos vejo depois do casamento.
MARIA (Ergue-se para lhe puxar um banco) - Não fiqueis de pé a cansar as pernas.
(Felícia ao sentar-se erra a cadeira e cai. Risos da Maria, da Simoa e da Rita)
MARIA (com o olhar no fogo, chama pelas servas) - Simoa! (Depois) Rita! Onde param estas mulheres?
(Entra Felicia, a parteira. Sacode o negro capote e observa a dona da casa)
MARIA - Quando preciso desta gente, sempre desaparecem! (Volta-se e esbarra com a parteira) Ah! Tia Felícia!
FELÍCIA (com voz de falsete, trémula) - Ai que frio, minha filha!
MARIA - Chegai-vos para a lareira. Não fiqueis na entrada.
( Felícia aceita o convite e aproxima-se da lareira)
MARIA - Que é feito de vós, tia Felícia? Por onde tendes andado? (Noutro tom) Procurais a Simoa?
FELÍCIA - Qual Simoa? Estava com muitas saudades de vós! É a primeira vez que vos vejo depois do casamento.
MARIA (Ergue-se para lhe puxar um banco) - Não fiqueis de pé a cansar as pernas.
(Felícia ao sentar-se erra a cadeira e cai. Risos da Maria, da Simoa e da Rita)
MARIA - Ó Simoa,
dá-me três “petit suisse”!
SIMOA - Para quê?
MARIA - Porque a
Felícia quer se “p’titsuicidar”, não viste como já conseguiu cair?????
(Todo o mundo pisca o olho ao professor Pedrosa)
FELÍCIA (levanta-se e senta-se) - Ai! (esfrega o rabo)
Agora dói-me o traseiro! (Muda de assunto) Que
barriguinha tão grande! Para quando está previsto?
MARIA - Espero no fim do mês.
FELÍCIA - Ainda não tive o prazer de conhecer o vosso marido.
MARIA - Não perdes nada! (Ri-se) ‘Tou a brincar! Já o viste nas ruas de Almada de certeza. É muito conhecido na vila. (Noutro tom) Os padres da Companhia de Jesus vieram buscá-lo esta manhã.
FELÍCIA (num sobressalto) - Vieram buscá-lo? Mas é coisa grave ?
MARIA - Claro que não! Crês que ele trabalha para Daech ou quê? Eles estão sempre a chamá-lo porque é muito conhecedor das terras da Índia e da China para onde os jesuítas desejam ir evangelizar.
MARIA - Espero no fim do mês.
FELÍCIA - Ainda não tive o prazer de conhecer o vosso marido.
MARIA - Não perdes nada! (Ri-se) ‘Tou a brincar! Já o viste nas ruas de Almada de certeza. É muito conhecido na vila. (Noutro tom) Os padres da Companhia de Jesus vieram buscá-lo esta manhã.
FELÍCIA (num sobressalto) - Vieram buscá-lo? Mas é coisa grave ?
MARIA - Claro que não! Crês que ele trabalha para Daech ou quê? Eles estão sempre a chamá-lo porque é muito conhecedor das terras da Índia e da China para onde os jesuítas desejam ir evangelizar.
FELÍCIA - E eles o
escutam e acreditam em tudo o que sai da sua boca ?
MARIA - Muita gente
do reino escuta e pede notícias ao meu marido. Até escreve discursos para o
bispo!
FELÍCIA - Ah! Que
sabedoria!
MARIA - Mas olha,
não é dessa sabedoria que podemos viver. Ninguém lhe paga pelos serviços que
prestou no Oriente! Desde que morreu D. João III, passando pela regência de D.
Catarina e pelo governo, hoje, do senhor cardeal Dom Henrique… Todos os
negócios têm vindo de mal a pior.
FELÍCIA - Será mau-olhado
dos espanhóis?
MARIA - Não sabemos
o que é … mais que isto por cá vai mal, vai. Todos querem embarcar para
enriquecer. Mas a maior parte das vezes trazem o baú cheio de miséria e
doenças, quando não deixam lá a própria pele. (limpa uma lágrima)
Restava-me o meu bom pai… e até ele me deixou! Pobre pai… (limpa outra lágrima).
FELÍCIA (ergue-se, respeitosa) - Morreu o senhor Diogo Correia?
MARIA - Regressava
da sua última viagem para ficar para sempre a viver connosco. Faleceu. Foi
lançado ao mar na costa da Guiné.
FELÍCIA - E eu sem
conhecer tamanha fatalidade. (Ajoelha e reza)
SIMOA (entra na companhia de Rita, que traz um panelão, Simoa preocupada e
nervosa) - Menina! Menina! O Carriço! O Carriço matou o galo!
MARIA (com autoridade) - Menina? Era quando andava ao teu colo.
Hoje sou uma senhora.
SIMOA - Ouvi,
menina. (Emenda)
Perdão! Ouvi minha senhora. (Descobre a parteira) Viva, tia
Felícia!
FELÍCIA (ergue-se) - Deus te
livre destes frios Simoa!
SIMOA - Ai o frio,
meu Deus! Minha senhora, o bicho está morto. Quereis depená-lo agora ou fica
para mais tarde?
MARIA - Tens água a
escaldar na lareira.
(Simoa retira o caldeirão a ferver que transporta para a
mesa. Repõe o caldeirão no gancho da lareira e volta para depenar o bicho com a
ajuda de Rita)
SIMOA (mostra o galo) - Este galo safado morreu de barriga cheia, andou
em cima de todas as galinhas. Morreu consolado!
FELÍCIA - Simoa, olha
que a inveja é um pecado mortal. (Risos de Simoa, Maria e Rita).
SIMOA (mudando de assunto) - Desde o ano passado que não a víamos,
Simoa. E foi com esta invernia que se meteu até ao Pragal?
FELÍCIA - Uma mulher
como eu não pode esquecer-se das pessoas amigas…
SIMOA (em voz baixa) - Préstimos e faro…
FELÍCIA - Espero que a
dona Mariazinha não tenha ainda nenhuma mulher apalavrada para os trabalhos que
a esperam. A senhora dona Brites, sua mãe, só me queria a mim como parteira.
RITA (ao ouvir o nome de dona Brites, pára e treme) - Nossa
Senhora!
SIMOA - Que foi? (dá-lhe uma pequena cotovelada) Para de ser tonta!
FELÍCIA (mostra as suas mãos no ar) - Foram estas mãos … (baixando as suas mãos e olhando para elas) que trouxeram o
corpo da dona Mariazinha para a luz da vida. (Convidando-se)
No fim do mês posso vir comer na vossa casa? (fazendo-lhe
os olhos de gato) Posso, meu querido anjo?
MARIA - O meu esposo
é que destina agora tudo. Nesta casa nada se resolve sem o ouvir primeiro.
PÊRO CARRIÇO (entra apressado) - O senhor Fernão Mendes Pinto chegou de
Vale de Real! Vou limpar a égua…
(Fernão Mendes entra e sacode o seu capote. Felícia e Maria erguem-se.)
FERNÃO MENDES
PINTO - Esta égua não aguenta um trote! Está velha e teimosa, não obedece a
nada…
PÊRO CARRIÇO (ofendido) - Velha, velha… Há que anos não é montada!
FERNÃO MENDES
PINTO - Carriço! Pêro Carriço!
PÊRO CARRIÇO (a sair, para) - Pêro Carriço é comigo… Vossa senhoria chamou?
FERNÃO MENDES
PINTO - Sim, chamei-te. Ficas avisado de que não gosto de ouvir reparos às
minhas opiniões, ouviste? A égua pertence a esta casa, é claro?
PÊRO CARRIÇO - Mas quem a
conhece melhor do que eu? Quem está sempre aqui a cuidar e tratar dela?
FERNÃO MENDES
PINTO - Mas ninguém falou em tirar-te o animal, és tu o encarregado dela.
PÊRO CARRIÇO (teimosa, aos gritos) - Mas aquela égua não gosta de ser
cavalgada! Para montar temos os burros!
MARIA (gritando) - Carriço! Pêro Carriço! Quem dá ordens nesta casa
é o meu esposo! E há de montar a égua quando bem o entender!
PÊRO CARRIÇO (ergue os braços como se desistisse) - Pronto eu cerro a boca
e fico mudo! (a sair) A meter a minha égua em
cavalarias com dois burros na cocheira!
FERNÃO MENDES
PINTO (aproxima-se da sua mulher, beija-a e afaga-lhe o ventre) -
Como vai o nosso guerreiro?
MARIA - Mexe-se
muito.
FERNÃO MENDES
PINTO (estende os braços para o lume e recita) - Fogo, pai da vida,
aquece os fracos ossos deste velho que tão carecido está da tua bênção!
FELÍCIA (por entre dentes, olhando de soslaio) - É velho mas ainda as
sabe engravidar...
MARIA - Fernão
Mendes, esta é a tia Felícia! Ela assistiu ao meu nascimento e ao dos meus
irmãos.
FELÍCIA - Deus vos
recompense, meu senhor! Que linda família!
FERNÃO MENDES
PINTO - Obrigado! (Noutro tom) E veio já para o
parto?
FELÍCIA - Eu, meu
senhor? Eu não sabia que a vossa esposa tinha comido um KFC (risos de Felícia e Fernão Mendes). Estou a rir obviamente.
Eu não sabia que ela estava grávida. (Ergue a mão e abençoa o casal)
MARIA (dirigindo-se ao esposo) - Que vos queriam em Vale Rosal?
FERNÃO MENDES
PINTO - Pediram-me para que falasse aos novos que vão embarcar para a Índia. (Muda de assunto) O almoxarife continua sem dar notícias?
MARIA - Não vos
procurou ninguém.
FERNÃO MENDES
PINTO ( inquieto) - Enquanto esse
poderoso tempo não melhorar não posso ir a Lisboa aceitar encomendas, é
perigoso com esse mar revoltado.
SIMOA (benze-se) - Mãe Santíssima!
MARIA (acercando-se dele, carinhosa) - Mas não estejais preocupado com o vosso
trabalho, as colheitas deste ano foram boas, e graças a Deus (olhando para o céu e suspirando) vendemos todo o vinho. Não
vamos ter faltas este inverno!
FERNÃO MENDES
PINTO (com um ar desesperado, triste) - Não sofro pela
comida, bem sabeis. Durante os meus vinte e um anos de peregrinação habituei-me
a correr riscos e a não estar plantado num lugar.
(Uma grande trovoada rebenta. As
quatro mulheres em pânico.)
CORO DE
MULHERES - “Santa Bárbara bendita
Que no céu estais escrita
Com vosso livro na mão
Pedi a Nosso Senhor
Que nos livre do trovão”
FERNÃO MENDES
PINTO (com calma) - Tenhamos calma, minhas senhoras!
CORO DE
MULHERES -” Espalhai-o para bem longe
Onde não haja pão nem vinho
Nem flor de rosmaninho”
FERNÃO MENDES
PINTO (sorridente) - Uma trovoada destas é para
assustar os meninos! Ah! Ah!
FELÍCIA - Que heresia!
FERNÃO MENDES
PINTO - Trovoadas grossas, tempestades… Vivi nas terras e continentes por onde
andei. Na China e no Japão, os ventos são tão medonhos e grossos que arrancam
árvores, derrubam casas, alevantando do chão homens, mulheres e meninos, que
parecem aves a voar.
(As mulheres vão retomando as posições anteriores. Mas Maria comove-se com a dissertação do marido)
FERNÃO MENDES PINTO - Que lágrimas são essas, minha esposa?
MARIA - Não choro da trovoada nem de medo dela. Da maneira como contais lembro-me dos dias felizes em que meu pai vos escutava encantado.
FERNÃO MENDES PINTO (com amargura) - Quando regressei ao reino todas as portas se me fecharam, mas graças ao apoio do vosso pai consegui ir para a frente. A ele devo uma esposa e um lar...
MARIA - E um filho... se Deus quiser.
FERNÃO MENDES PINTO (divaga) - Navegámos sete meses de Goa a Lisboa. Atravessámos mil tormentas. Uma noite tivemos a embarcação cheia de peixes voadores, são peixes do tamanho dos nossos morcegos. Teimosos e loucos e sempre em quantidade maior, contagiando a tripulação de risos. (Muda de tom) Conhecemos tempestades em que as tábuas da nau subiam e desciam no vaivém das ondas. Derrotámos uma tentativa de abordagem de piratas franceses. Não esquecerei jamais Diogo Correia de Brito, piloto da nau "Sacramento".
PÊRO CARRIÇO (aparece de mau humor e anuncia) - Chegou à quinta um homem que pede para ser recebido.
FERNÃO MENDES PINTO - Não disse porque vem?
PÊRO CARRIÇO - Veio de carroça.
FERNÃO MENDES PINTO - Que entre o homem.
(Pêro Carriço sai. Simoa limpa as mãos ao avental e, fazendo sinal a Rita, dirige-se também para as cadeiras de alto espaldar, que ambas transportam para perto da lareira)
MARIA - Limpai a mesa, levai tudo (para a parteira) Tia Felícia, retirai-vos, por favor.
FERNÃO MENDES PINTO - Este Pêro Carriço não conhece ninguém!
Acreditas que nem a Beyoncé ele conhecia! (Risos) Será o almoxarife? Será alguém com boas notícias para mim da Santa Casa da Misericórdia?
(As duas servas e a parteira obedecem, Carriço introduz o visistante)
TELMO PAIS (escudeiro de 43 anos de idade, cerimonioso) - Senhor Fernão Mendes Pinto e minha senhora...
FERNÃO MENDES PINTO (feliz) - Senhor Telmo Pais, que felicidade receber-vos! (Abraça-o) A que devo vossa visita? (Indica a mulher) Minha esposa, dona Maria Correia de Brito.
TELMO PAIS (numa vénia) - Os meus respeitos. Tive a honra de conhecer vosso pai... a sua morte a todos enlutou.
MARIA (vénia) - Deus vos abençoe.
FERNÃO MENDES PINTO - Vem aquecer-te perto do lume. (Ambos se sentaram nas cadeiras, Maria no banco de costura) Dizei, Telmo Pais.
TELMO PAIS - D. João de Portugal, encarregou-me de vos trazer um convite. O seu casamento com a senhora dona Madalena de Vilhena tem lugar nos primeiros dias de março. E ele quer vossa presença como convidado.
FERNÃO MENDES PINTO - Grande honra me concede vosso amo. Belo e valente cavaleiro. Nalgumas tarde, na Santa Casa da Misericórdia, tivemos conversas muito produtivas.
TELMO PAIS - Os vossos relatos do Oriente são apreciados por muita gente.
FERNÃO MENDES PINTO - Muito obrigado!
TELMO PAIS (entrega uma carta a Fernão Mendes) - O convite de D. João. (Fernão abre e lê) É o senhor Francisco de Sousa Tavares, o pai da noiva.
FERNÃO MENDES PINTO - Não tive ainda o prazer de encontrar o senhor Francisco de Sousa Tavares.
TELMO PAIS - Sua excelência tem uma grande estima por vós. Escutei-o várias vezes elogiar-vos.
FERNÃO MENDES
PINTO - Ah! Quem tal diria!
TELMO PAIS - Já se
escutam louvores de vós, Fernão Mendes Pinto, há muito tempo no reino! O senhor
Francisco Tavares falou-nos em duas maravilhosas cartas recebidas por el-rei D.
João III, uma delas escrita pelo missionário Francisco Xavier. Desconheceis tais
cartas? Todo o reino comenta a vossa amizade e trabalhos com São Francisco
Xavier.
FERNÃO MENDES
PINTO (solene) - Amei esse homem e venero-o desde que
morreu. Vivemos juntos momentos que não esqueço! (emocionado, como
se recordasse o passado)
TELMO PAIS - Quando
falais dele o vosso olhar ganha uma luz que não é vossa.
MARIA - Podeis
contar-nos mais sobre essas cartas?
TELMO PAIS - Tenho ainda
em memória algumas linhas. Na de São Francisco, lembro-me: (ouve-se uma voz
off, a luz foca apenas Fernão) “Fernão Mendes serviu Vossa Alteza
nestas partes e emprestou-me 300 cruzados no Japão para construir uma casa em
Yamaguchi”.
MARIA - Sim,
lembro-me desse empréstimo.
TELMO PAIS - Voltando às
cartas, na outra, de Aires Brandão, dizia algo como: (ouve-se uma voz
off, a luz volta a focar apenas Fernão) “Começou a distribuir o que
tinha ganhado com tanto trabalho, dando muitas esmolas aos pobres. A muitos
escravos agasalhou mandando-lhes que conhecessem a Deus daí por diante. Três
deles se lhe deitaram aos pés chorando que queriam ir com ele para o Japão.” (Noutro tom) Confirmais o que escreveu?
FERNÃO MENDES
PINTO - Foi verdade!
(Comovem-se todos)
MARIA - (limpa uma lágrima) - Infelizmente!
(Mutação)
ATO I
5.° QUADRO
(Passaram cinco anos, estamos em 1568. Bom tempo. Fim de
tarde. Fernão Mendes e a mulher ceiam. Ambos estão sentados nas melhores
cadeiras. A carne é cortada com faca e levada à boca com as mãos. Dentro de
casa, uma criança chora…)
MARIA (agora com 23 anos de idade, grita) Simoa! Rita! Não ouvis a menina a chorar?
SIMOA (aparece) - Senhora?
MARIA - A menina
está a chorar. (a serva Simoa sai)
FERNÃO MENDES (que tem 58 anos, pergunta) A Catarina ainda não acordou?
MARIA - Brincou toda
a tarde com a Rita e adormeceu.
FERNÃO MENDES - Que vida a
daquela menina !
MARIA - E querias tu
um rapaz...
(A serva canta uma canção de embalar. Pausa)
MARIA - Em que
pensais, marido, querido?
FERNÃO MENDES - Uma vez no
reino de Bungo ofereceram aos portugueses uma comida na presença do rei. E como
acharam estranho o nosso feio costume de comer a carne e o peixe com as mãos,
vieram-nos oferecer muitos braços de pau…
MARIA (admirada) - Braços
de pau, como os que se oferecem aqui a Santo Amaro?
FERNÃO MENDES (rindo) - Sim, para nós comermos com eles, enquanto
lavávamos as nossas mãos sujas!
MARIA - E os
portugueses o que fizeram?
FERNÃO MENDES (rindo mais) - Sentiram-se ofendidos.
MARIA - E esses
selvagens?
FERNÃO MENDES (gargalhadas) - Riram-se, riram-se…
MARIA - Se pões no
papel uma coisa dessas ninguém acredita. é por essas histórias que o senhor
conta tão fora dos nossos usos e costumes...que não acreditam em vós, marido. (em tom irónico repete o adágio popular) Fernão, mentes?
Minto! (Pausa) Mais uma vez não fostes eleito para
esse cargo na Santa Casa da Misericórdia.
FERNÃO MENDES - Perdi o
lugar de procurador de São Lázaro e Albergaria.
MARIA - Que gente tão invejosa e tão
ingrata ! E devem-vos tantos favores, Fernão Mendes!
(Rita entre empunhando um castiçal com uma vela acesa,
que coloca sobre a mesa. Depois, enche uma bacia de estanho na caldeira da
chaminé, pega numa toalha de linho e dirige-se ao casal. Maria é a primeira a
passar as mãos por água; depois o marido. Ambos se enxugam na toalha. A
rapariga vai em seguida retirar da mesa os restos de comida, que despeja num
latão. Retira igualmente a loiça, as facas e os copos.)
FERNÃO MENDES - Ontem vi o
Rei em Lisboa, Iá para a Sé, a ouvir missa. Grande acompanhamento. O cardeal D.
Henrique pareceu-me adoentado.
MARIA - O nosso rei
é um menino de catorze anos. Tão desejado fora o seu nascimento que ainda não
perceberam que cresceu.
FERNÃO MENDES (enche-se e vai buscar papel tinteiro de metal) - Não
deixeis nossa filha mexer-me nos papéis. Há dias encontrei páginas rasgadas e a
areia do tinteiro espalhada pelo chão.
MARIA (pega numa cesta e
retira roupa que vai dobrando) - Esteve hoje um sol de África. A roupa
secou tanto que até parece pau… como os paus para comer, os bracinhos que vos
ofereceram lá nessa terra… (Ri-se, dando palmadas na roupa)
FERNÃO MENDES - Não vos
incomodais com o meu amigo sol. Sem ele e sem seu fogo abençoado não seria
nada.
MARIA - Trouxestes
trabalhos de Lisboa?
FERNÃO MENDES (feliz) - Hoje tenho carta de alforria.
MARIA - Não estás
farto de tanto escrever?
FERNÃO MENDES (com exaltação) - Maria! Minha boa e paciente esposa!
Finalmente chegou o dia de eu trabalhar para vós e para nossas filhas!
MARIA (com espanto) - Vais trabalhar para nós ?
FERNÃO MENDES - Vou escrever
tudo o que observei… Tudo, tudo… Vou escrever a minha peregrinação. (Noutro tom) Quantos anos vou levar neste louco projeto?
Creio que não sei. A vida é incerta, os compromissos têm-me forçado a adiar
esta empresa.
MARIA - Vais pôr no
papel tudo… tudo, tudo? Cuidado, vê no que te metes, Fernão Mendes?!
FERNÃO MENDES - Começarei já!
A vida que me resta pode não ser suficiente para acabar esta tarefa. Mas o bom
Deus vai estar comigo… (Põe as mãos e sobe o olhar) Não é
verdade, meu Senhor?
MARIA (aflita) - Tenha cuidado com a escrita, esposo meu! Dizeis
coisas tão atrevidas que chocam muitos ouvidos. Há gente suspeita por todos os
lados, que vos querem mal… Bem sabes que são numerosos os que ousam chamar-vos
mentiroso…
FERNÃO MENDES (ri-se e repete o adágio popular ironicamente) - Fernão, mentes?
Minto.
MARIA (admirada) - Ãnh? Mas isso é que é novidade para mim,
querido esposo! Como é? Repita mais uma vez…
FERNÃO MENDES (voz grossa) - Fernão, mentes? Minto.
MARIA - Que línguas
tão bem cortadas! O meu santo pai, que Deus tem, repetia que os portugueses são
um povo de invejosos, de maldizentes e de desordeiros… (Repete) “Fernão,
mentes?” Querem dizer na deles que tudo o que dizes ou escreves são
mentiras!...
FERNÃO MENDES - “A gente que
viu pouco do mundo, como viu pouco, também costuma dar pouco crédito ao muito
que outros viram.”
MARIA - Cada dia
compreendo melhor a razão dos poderosos não vos terem pago os serviços
prestados na Índia.
FERNÃO MENDES (solene) - Maria, enche dois copos com o nosso vinho.
MARIA - Dois copos?
FERNÃO MENDES - Dois copos.
MARIA - Mas eu já
bebi à ceia.
(A esposa obedece-lhe e entrega-lhe um copo)
FERNÃO MENDES (num brinde) - Bebamos pelo meu trabalho, pelas nossas filhas
e pelo rei-menino D. Sebastião!
(Abraçados, tocam os copos)
SIMOA (entra) - Com licença. (Volta o rosto ao vê-los
abraçados) Perdão!
MARIA - Podeis ir
comer. Chama o Pêro Carriço.
SIMOA - Eu aviso os
senhores do que está a acontecer na cocheira.
MARIA - Mas que há?
SIMOA - O Pêro
Carriço está doidinho de todo! Chora e berra agarrado à égua e por preço nenhum
se afasta dela. Dá punhadas na terra e beija o animal. Ou me engano muito ou a
besta está na agonia. É um quadro que corta o coração. Aquele homem quer tanto
o animal como se quer a um filho.
FERNÃO MENDES - Ide ver o que
se passa, Maria.
(As duas mulheres saem. O escritor
senta-se à mesa, leva a pena à boca para amaciar o aparo molha na tinta e, por
fim, escreve. A luz reduz-se à figura de Fernão Mendes).
VOZ DE FERNÃO
MENDES- «Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos que
por mim passaram começados quando tinha 28 anos e no melhor tempo da minha
vida, acho que com muita razão me posso queixar da Ventura que parece que teve
como único objetivo perseguir-me e maltratar-me, como se isso fosse uma grande
glória; porque vejo que, não só me fez viver na pobreza desde que nasci, como
também me quis levar às portas da Índia, onde os trabalhos e os perigos nunca
pararam de chegar à minha vida. Mas por outro lado, quando vejo que Deus sempre
me salvou dos perigos, acho que não tenho tanta razão de me queixar, só tenho
de lhe dar graças por este presente, por poder estar a escrever este livro de
viagens que vou deixar por herança à minha família...»
(Durante a dissertação surgiu um moço de 14 ou 15 anos -
é Fernão Mendes jovem - que se coloca no lado oposto da tampo da mesa,
observando o escritor. Bebe o vinho de um dos copos, faz gaifonas… Estamos no
plano da memória em que FMP fala consigo próprio recordando os primeiros anos
da sua vida / espécie de analepse)
FERNÃO JOVEM - Ao olhar pra
ti, Fernão Mendes, vejo-te no que me tornei. Passaram muitos anos. Quantos? Se
não erro... fazes sessenta pro ano que vem. Tinha doze quando o tio me pôs em
Lisboa para me libertar da miséria da casa paterna na vila de Montemor-o-Velho.
FERNÃO MENDES - Diabinho da
minha infância, que pretendes de mim? Vens pra avivar a memória do velho em que
te tornaste? Só o Inverno me tolhe os ossos e as carnes. Recordo-me e até me
revejo na tua mocidade. E sinto no sangue os medos que me forçaram a fugir. A
minha primeira aventura fora quando embarquei no cais da pedra numa caravela de
Alfama que transportava cavalos para Setúbal, onde naquele tempo estava el-rei
D. João III.
FERNÃO JOVEM - Em frente de
Sesimbra, um corsário francês abalroou o nosso barco e reduziu-nos a escravos.
Pela primeira vez saboreei a dor do chicote e isso dói muito quando chega na
pele, infelizmente tenho muita experiência. Pouco depois uma nau foi apanhada e
nós abandonados nus, em pêlo, na praia de Melides como mercadoria sem valor.
FERNÃO MENDES - A memória
não me vai trair nesta escrita, a não ser para alguns pequenos detalhes. Os meus
receios, o meu medo, residem somente na maneira como irás contar a minha
peregrinação. Os tempos pioraram desde a morte de el-rei D. Manuel. As palavras
têm de ser medidas, pesadas, disfarçadas por vezes. Nem toda a verdade crua
pode ser posta no papel. Todos os dias conhecemos novas proibições de livros e
de escritos. Querem cada vez mais gente no reino. Ali do alto do Pragal,
assistimos a vários queimadores no Terreiro do Paço. Hereges, bruxas,
feiticeiros, mercadores, magistrados, judeus... cristãos novos…
VOZ (repercute num eco) - Judeus... cristãos novos…
FERNÃO MENDES - A máquina da
Santa Inquisição não pára de torturar seres humanos. Vivemos tempos de
terror... Os homens tornam-se hipócritas para não serem apanhados na rede.
Tempos pavorosos... não Fernão Mendes Pinto. (Encara o jovem)
Oh, como invejo os anos da minha juventude...!
FERNÃO JOVEM - Eu fui
feliz?
FERNÃO MENDES - Feliz... não
foste. Andaste sempre a fugir. Mas, vivias cheio de ambições e acreditavas que
podias enriquecer. Sonhavas em ser poderoso…
FERNÃO JOVEM - E não o
foste? Não conquistaste a riqueza e o poder?!
FERNÃO MENDES - Quando
chegar a altura... eu hei-de narrar o que se passou, escreverei tudo com
verdade...!
FERNÃO JOVEM - A verdade
verdadeira? (E soltou uma gargalhada) Olha bem para mim,
Fernão Mendes.
FERNÃO MENDES (sopra enfadado, e retoma o discurso) - Como eu estava
dizendo... vivia cheio de ambições e lia tudo quanto apanhava diante dos olhos.
E também escutava, sabia ouvir os mais sabedores e experimentados homens.
Procurava tanto um bom livro como perseguia com o olhar a mais bela e tentadora
das mulheres. Cresci e fiz-me homem, este que sou hoje do nome de Fernão Mendes
Pinto.
(No interior da casa, ouvem-se gritos e choro. A luz que
banha o jovem Fernão Mendes Pinto dá lugar à penumbra e oculta-o. O escritor
ergue-se, inquieto)
FERNÃO MENDES - Maria! Que
gritos são esses?
(A claridade volta à cena. Pêro Carriço entra aos gritos,
lavado em lágrimas, amparado pelas mulheres)
PÊRO CARRIÇO - Morreu!
Morreu a minha égua, a minha amiga... Eu não posso viver sem o animal...!
SIMOA - Qu'é isso,
homem!? Não chores, a égua não é uma alma cristã!
PÊRO CARRIÇO - Aqui el-rei!
Sozinho! Abandonado!...
MARIA - Deem-lhe um
copo de vinho. Sentem-no.
PÊRO CARRIÇO - Fartei-me de
avisar! Não montem o animal! Não montem o animal! Ninguém deu ouvidos e
mataram-no... Mataram-no, malvados!
FERNÃO MENDES - Trouxeram o
homem para quebrar o meu trabalho? Não quero ouvir esta lamúria!
PÊRO CARRIÇO - A minha égua
está morta! Mataram a minha companheira!
(As servas levam o camponês. Maria encara o marido,
preocupada. Fernão Mendes senta-se incomodado, e tenta recomeçar a escrita.
Mas, num gesto brusco, atira a pena para a mesa)
(Mutação)
ATO I
6° QUADRO
(Primavera de 1575. Decorreram sete anos após o último
quadro. Uma tapeçaria aparece numa das paredes. O número de cadeiras duplicou:
quatro. A idade dos personagens deve ser atualizada: Fernão Mendes, 65 anos;
Maria, 32; Catarina, 13; Joana, 12; Simoa, 50 e Rita, 27 anos)
MARIA (compõe o cabelo da filha mais velha) – Quando o senhor
Francisco de Andrade chegar fazes uma vénia. Se ele fizer menção de te
beijar... beija-o tu primeiro. (Chama a outra filha)
Joana! Onde se meteu aquela menina?
JOANA – Senhora
minha mãe!
MARIA – Meu Deus!
Toda suja! Ai, o teu vestido! (Bate-lhe)
Eu não quero que pegues nos vitelos! (Grita) Simoa!
Simoa!...
SIMOA (entra) - Minha senhora, eu fartei-me de gritar para as
meninas não andarem com os vitelinhos no regaço! Elas cegam uma mulher!
MARIA - O senhor
Andrade está a chegar e as minhas filhas parecem duas mendigas!
SIMOA - Foi quando
eu voltei costas. (Vai buscar uma bacia com água e um pano, e
tenta remediar) Põem tonta uma alma cristã!
CATARINA (divertida, executa vénias pela sala, e repete como se estivesse do
senhor Francisco de Andrade) - Vossa senhoria, como está? Deus vos
guarde, meu senhor! E a vossa esposa e minha senhora?
(Joana chora ao ser penteada pela mãe
e pela serva)
MARIA (aponta Catarina) - Que filhas, meu Deus! Não levam nada a
sério! Está uma mãe a educá-las, ensinando-lhes as melhores maneiras e
cortesias, e elas ainda gozam!...
FERNÃO MENDES (entra com um braçado de livros, que coloca sobre a mesa) -
Eu estava lá dentro e já ouvia os vossos gritos. Sempre um alvoroço quando
alguém nos visita!
MARIA - São as
nossas filhas!
FERNÃO MENDES - Mas os gritos
são teus! Cala-te! (Noutro tom) Não
podemos viver neste desassossego. A minha casa mais parece um antro de
regateiras!
MARIA - Estas filhas
tiram a paciência de uma alma cristã! Só quem passa um dia inteiro…
CATARINA (debruçada sobre a mesa, mexe nos livros e lê os títulos) -
“Décadas da Ásia”... João de Barros, “Crónica do Felicíssimo Rei Dom Manuel”...
Damião de Góis, “Lendas da Índia”... Gaspar Correia… “Os Lusíadas”, de Luís Vaz
de Camões…
MARIA (joga uma palmada na filha) - Está quieta, Joana ! Com um
vestido tão bonito, e cheio de nódoas! (Molha
a ponta da toalha e tenta limpar) O senhor que nos visita é de muita
cerimónia. Está na Santa Casa da Misericórdia com o vosso pai.
CATARINA - O senhor não
tem livros do senhor Francisco de Andrade?
FERNÃO MENDES - Não, minha
filha, mas conheço alguns poemas e traduções suas.
CATARINA - Por que
razão estás a pôr tantos livros sobre a mesa?
FERNÃO MENDES - Nesta
família raramente conhecemos o lugar das coisas. Quando se procuram os livros é
preciso voltar a casa do avesso. Dentro das arcas da roupa e do pão, debaixo da
cama e até descobri na adega um livro rasgado e cheio de nódoas de vinho.
MARIA - Pergunta à
Catarina onde ela põe os livros depois de os ler.
FERNÃO MENDES - Ouves a tua
mãe? Achas bem a falta de respeito pelos livros?
CATARINA - Não é por
mal que os deixo aqui e ali. Mas é minha mãe quem me grita quando me apanha a
ler. E eu assusto-me e abandono o livro em qualquer lugar.
FERNÃO MENDES - Porque
gritas tanto com a Catarina?
MARIA - Ela já tem
idade para ajudar nas tarefas da casa. Não deve estar tardes inteiras na
leitura e a não pensar em mais nada.
CATARINA - Não é
verdade, senhor meu pai! Eu não estou tardes inteiras a ler!
MARIA- Deves
ouvi-la para melhor conheceres a falta de respeito que há nesta casa! Se eu lhe
batesse por todas as más respostas... ao regressares a casa não a ias
reconhecer de tão negra que a punha!...
CATARINA - Gosto de ler
e foi lendo que aprendi. Não nasci para serva como a Simoa.
SIMOA (entre dentes) - Ah! Víbora!...
JOANA - Cá por mim não
gosto nada de ler. Que seca!
FERNÃO MENDES - Uma filha
lê; a outra, vai para burra!...
CATARINA (trocista) - Tende tento no que dizeis, senhor meu pai. A
mãezinha é de más letras…eu nunca a chamei pelo nome desse bicho!
MARIA (atira com um objeto à filha, que foge) - Malvada! A quem sairȧs
tu, minha… peste?! (para a serva Simoa) Ah,
Simoa, tu é que podes dar valor às nossas canseiras!
SIMOA - Cada vez
pior, minha senhora. Dantes contávamos com os dois braços do Pêro Carriço…
Agora, o pobrezinho, é um estorvo. Encafuado no sótão da adega, ali suja, mija,
vive naquela esterqueira. Deus me perdoe, mas uma alminha assim era uma
caridade ser recebida no Céu.
MARIA - Que fazemos
dele, Fernão Mendes?
FERNÃO MENDES - Esperamos que
deus o leve. Serviu de criança a vossos pais, não somos nós agora que vamos
atirá-lo para a azinhaga. Encarregai a Simoa de contratar um homem para a
quinta.
SIMOA - Senhor, o
Pêro Carriço não quer!
FERNÃO MENDES - Não quer?
Não quer o quê?
SIMOA - Se ele
apanha outro homem na quinta… diz que o mata.
(Catarina alheia-se da conversa dos
pais, pega num livro e lê em voz baixa, passeando pela casa)
FERNÃO MENDES - Mata? É
tonto!
SIMOA - Vossa
senhoria tem em mente o que aconteceu nas últimas vindimas? Ele agarrou numa
forquilha e quis correr com os “ratinhos”... Às mulheres, apareceu-lhe nu em
pêlo... Foi o cabo dos trabalhos para o amarrar e metê-lo no sótão.
MARIA - Fernão
Mendes, sois mamposteiro[1] na Santa Casa
da Misericórdia… Não podes meter o pobre no Hospital dos Lázaros, em Cacilhas?
FERNÃO MENDES - O homem não
está enfermo. Está velho.
SIMOA - O Carriço
está doido, meu senhor! O infeliz vai para a beira do caminho dizer mal dos
senhores, e acusá-los de ladrões! Que lhe roubaram a quinta, que lhe mataram a
égua!...
MARIA - Não podemos
por mais tempo consentir tamanha vergonha.
CATARINA (recita uma estância de “Os Lusíadas”) -
“E também as memórias gloriosas
D’aqueles Reis,
que foram dilatando
A Fé, o
Império, e as terras viciosas
De África et de
Ásia andaram devastando;
E aqueles, que
por obras valerosas
Se vão da lei
da morte libertando”...
(Rita entra seguida por Francisco de
Andrade. Este é um gentil-homem de 35 anos. Bem-falante e de gestos palacianos).
RITA - O senhor D.
Francisco de Andrade.
FRANCISCO DE
ANDRADE (que traz um maço de papéis enrolado num pedaço de pano) -
Que Deus esteja presente nesta virtuosa casa!
(O ambiente familiar não poderia ser
melhor à primeira vista : o pai consulta livros, a filha mais velha recita
Camões, imitando Joana a irmã, e as duas servas perfilam-se diante da senhora…)
FERNÃO MENDES (indo ao encontro do visitante) – Bem-vindo seja à minha
pobre casa, senhor.
FRANCISCO DE
ANDRADE (cumprimenta a senhora e as filhas) - Senhora
dona Maria… Meninas…
CATARINA (numa vénia) - Vossa senhoria como está? E a vossa esposa e
minha senhora?
(Joana pode repetir a vénia da irmã.
Simoa demora-se na reverência e acaba por sair)
FRANCISCO DE
ANDRADE (solene) - Senhor Fernão Mendes, disse-vos na
última reunião que tinha pressa em estar convosco. A razão é a leitura do vosso
trabalho. (Ergue o maço de papéis)
FERNÃO MENDES - Trata-se
duma rude e tosca prosa essa que tendes aí nas vossas mãos…
FRANCISCO DE
ANDRADE - Em pouca conta tendes o vosso labor literário. Ao longo desta primeira
metade da vossa escritura comovi-me e deslumbrei-me vezes sem conta. Que
engenho, que soma de notícias sobre os povos e as terras que percorreu.
FERNÃO MENDES - Achas que
não é perca tempo concluí-la?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Diante da riqueza destas páginas tendes a obrigação de vos apressar. Que
memória a vossa, que abundância de acontecimentos, que coisas espantosas
testemunhais, Fernão Mendes!
FERNÃO MENDES - Escrevo para
que estas meninas possam conhecer algo do meu passado. Só por elas e para elas
empreendo esta longa e trabalhosa empresa.
FRANCISCO DE
ANDRADE (sorrindo-lhe) - Exageras, exageras em modéstia
e humildade, meu bom amigo. Quem recebe de Deus tão precioso talento tem
obrigação de saber o que vale.
FERNÃO MENDES - Há cinco
anos que vivo embrenhado nesta floresta de papéis sem a mínima noção ou juízo
de valor. Tenho vivido horas de completa desorientação como uma nau batida pela
tormenta em busca de porto seguro! Como sabeis não sou um escritor, não andei
na escola, muito menos na Universidade.
FRANCISCO DE
ANDRADE - Eu frequentei por alguns anos a Universidade de Coimbra. E por vida
minha não dei fé do talento e do engenho terem aprendizagem naquelas sábias
paredes. Deus dotou-vos, Fernão Mendes Pinto, com o que não se recebe dos
mestres, por mais doutos e sabedores.
FERNÃO MENDES - Mas não tens
reparos a fazer a estes papéis?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Quem sou eu para vos emendar? Este vosso grande livro uma vez concluído
e ao dar entrada numa oficina de impressão…
FERNÃO MENDES - Não penso em
tal destino.
FRANCISCO DE
ANDRADE - É de ter, em conta que toda esta prosa é para ser impressa!
MARIA - Com vossa
licença, senhor Francisco de Andrade. Se me permitis, retiramo-nos. (Para as filhas) Vamos, meninas.
CATARINA (renitente a sair) - Minha mãe, eu queria…
MARIA - A menina não
quer nada!
JOANA - Vamos ver a
vaca e os bezerros, mana.
MARIA - Simoa, não
consintas Não consintas! Não queres uns açoites, Joana?
(Saem todas. Os dois homens sentam-se
à mesa)
FRANCISCO DE
ANDRADE (retira o pano que envolve o manuscrito. Acarinha os
papéis, com devoção) - Que trabalho maravilhoso que iniciaste. A
leitura cresce de interesse e é sempre com pesar que a interrompemos. Durante
as horas em que estamos distantes da vossa escritura o nosso pensamento não se
alheia das figuras e das nações que descreves com tão viva intensidade.
FERNÃO MENDES - Peço-vos que
a vossa crítica seja severa, sem piedade, à altura da nossa amizade. (Há uma hesitação no visitante). Tens algo a dizer, senhor
Francisco de Andrade?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Se me permitis.
FERNÃO MENDES - Claro,
falai.
FRANCISCO DE
ANDRADE - Neste oceano de prosa não há paragens para o leitor. Começais a narração
e essa torrente de figuras, de acontecimentos não tem descanso. O vosso
testemunho só tem a ganhar dividido em pequenos capítulos. Cada uma dessas
paragens poderia ser encabeçada talvez por um título.
FERNÃO MENDES - Achais…?
FRANCISCO DE ANDRADE (como que receoso da sugestão)
- Mas o importante é que prossigais no vosso trabalho. Que memória a vossa,
Fernando Mendes! Estás a narrar acontecimentos vividos por vós há trinta anos,
não é assim?
FERNÃO MENDES - Quando
regressei ao reino, no Verão de 1558, e durante a longa viagem, tentei
rememorar e tomar apontamentos. No meu baú vinham também papéis cheios de nomes
e de datas que me têm ajudado imenso.
FRANCISCO DE
ANDRADE - A vossa memória espanta e deslumbra o leitor. Mas grande e temerosa
empresa vos aguarda ainda nesta segunda parte. A vossa passagem pela Companhia
de Jesus, as missões na China e no Japão, a amizade e os trabalhos com o santo
padre Francisco Xavier são escritos do maior interesse e proveito.
FERNÃO MENDES (muda de assunto, brusco) - Disseste que há vantagem de
dividir em capítulos?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Qualquer leitor corre o sério risco de se perder neste oceano de prosa.
(Malicioso) Se me permitis uma graça: o leitor
tem necessidade de respirar.
FERNÃO MENDES (apossa-se dos papéis) - Por estes dias, recomeçarei a
escrever. Assim Deus me dê vida e talento.
FRANCISCO DE
ANDRADE - Espantoso! Treze vezes cativo e dezassete vendido. A vossa odisseia
tem-se espalhado nos últimos tempos pelo reino. Não deve ser novidade para vós
conhecer os numerosos admiradores que muito vos louvam. Mas outros há, e não
são poucos, que descrêem das vossas histórias. Sabeis disso?
FERNÃO MENDES (rindo) – Fernão, mentes? Minto.
FRANCISCO DE
ANDRADE - É curioso: entre os incrédulos que vos acusam de fantasioso, nenhum
desmente a vossa amizade com o padre-mestre Francisco Xavier.
FERNÃO MENDES - Avolumam-se
os que me interrogam sobre essa alma de eleição.
FRANCISCO DE
ANDRADE (pega num volume que está sobre a mesa) - “Os
Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões.
FERNÃO MENDES - Estivemos em
Goa pela mesma altura. Com o Luís Vaz… E falámos sobre o mau governo da Índia.
Ele estava a viver quase de esmolas. Escreveu também cartas, elogios fúnebres,
poesias de louvor… Achei-o muito impulsivo, uma alma inquieta. Bebia com
soldados e mulheres perdidas. Lá ficou com as suas queixas. Pobre Luís Vaz! Eu
já o sabia poeta de alto merecimento. (Noutro tom) Entretanto, embarquei com o padre Belchior rumo ao
Japão e não tive mais notícias suas. Há dois anos descobri o livro dele, em
Lisboa. Comprei-o por 400 réis, que na altura me custaram a desembolsar. Mas
compensou, visto ser uma obra de génio. (O visitante observa o volume,
admirado) Que foi? De que se trata?
FRANCISCO DE
ANDRADE - O meu volume dos Lusíadas tem o desenho da capa diferente.
FERNÃO MENDES - Diferente?
Perdoa-me, mas não é possível!
FRANCISCO DE
ANDRADE - Neste desenho o pelicano olha para a esquerda… Na minha capa o pássaro
olha para a direita.
FERNÃO MENDES - Tens a
certeza?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Absoluta, Fernão Mendes. É capaz de ser uma edição falsa.
FERNÃO MENDES - Falsa?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Venderam os primeiros trezentos… e o impressor atirou para o mercado
outros tantos. Terão sido à revelia do pobre Luís Vaz?
FERNÃO MENDES- Tão exaltado
ele é, se sabe do furto, desanca o impressor! Não é homem para que trocem
dele!...
FRANCISCO DE
ANDRADE - Hei de falar nisto em Lisboa.
FERNÃO MENDES - Como é a
primeira vez que me visitam… eu faço gosto de vos mostrar a minha quinta.
FRANCISCO DE
ANDRADE - Recebeste-a como dote de vossa mulher?
FERNÃO MENDES - É verdade,
recebi-a pelo casamento como dote!
(Encaminham-se para a saída)
FERNÃO MENDES - El-rei está
em Almeirim?
FRANCISCO DE
ANDRADE (sorrindo) - Continua a adorar a oferta de Sua Santidade: uma
das setas tinta de sangue do mártir São Sebastião.
FERNÃO MENDES (sorrindo também) - Já possuíamos um braço do Santo ofertado
por Gregório XIII…
FRANCISCO DE
ANDRADE - Agora por relíquias! Tendes objetos pessoais do padre mestre Francisco
Xavier?
FERNÃO MENDES - Objetos
pessoais?
FRANCISCO DE
ANDRADE - Pequenas relíquias santificadas pelo toque das suas mãos.
FERNÃO MENDES - Tive em meu
poder alguns documentos escritos pelo seu próprio punho. Mas perdi-os num
naufrágio. Perdi tudo. (Interessado) Porquê?
FRANCISCO DE
ANDRADE (encara-o, perplexo) - Por nada. Por nada. (Noutro tom) Vamos então ver a quinta?
(Mutação)
FIM DO 1° ACTO
ATO II
1.° QUADRO
(Setembro de 1577. Vindima. Recanto de adega com larga
selha onde se pisam as uvas. Ambiente festivo e pagão. Estão a dar ao pé:
Fernão Mendes, Catarina, Joana e mestre Tanoeiro. Cantam e pisam, bailando. Da
quinta chegam-nos sons de pífaros e tambor. O pai e as filhas têm uma coroa de
flores na cabeça. Simoa e Felícia transportam cabazes com uvas que deitam na
selha. Vasilhas e materiais de tanoaria estão espalhados pela adega)
FERNÃO MENDES (canta)
-
”Muitos bens deu Deus
na terra
e a melhor são as
parreiras
e as uvas que fazem
guerra
a sede de
regateiras.”
“Pisar uvas no lagar
não nos toma de
fadiga
é uma forma de
bailar
cantando uma
cantiga.”
TANOEIRO (canta)-
”Tu dali e eu daqui
mas tu hás-de começar
que o vinho corra per hi
até nos fazer sujar.”
“Estas nódoas nos
focinhos
nós as iremos lavar
e beberemos cinquinhos
que estas uvas hão-de
dar”
CATARINA (canta)-
” Quando acabar de beber
fico muito estonteada
nem sou capaz de
saber
se inda estou em Almada.”
“E aqui o meu namorado
este galante mocinho
perde o siso e o cuidado
quando se mete no vinho.”
SIMOA (vaza o cesto, brincalhona) - Estais zangado comigo, mestre
Brás?
TANOEIRO (homem entroncado, de 50 anos) - Zangado? Há que tempos não
me sentia tão feliz!
SIMOA (brejeira) - Não vejo os vossos cabelos floridos! Não quer
algumas florzinhas?
TANOEIRO - Quer a tia
Simoa oferecer-me uma coroa?
FELÍCIA (que ouviu o pedido, responde, galhofeira) - Quem vos vai
florir sou eu! Sou eu, mestre Brás!
SIMOA - Não
aceiteis! Não aceiteis! Quem vos vai trazer as florinhas sou eu!
CATARINA (dá o braço ao pai e beija-o) - Meu pai, credes que há milagres na festa do vinho?
SIMOA (puxando
a comadre) - Olhe que o mestre está debaixo de olho! Não vos metais
com ele!
FELÍCIA - Quem tem
fôlego é que sopra a gaita!
SIMOA - Comadre, não
desejais o homem para vós! Não sejais desmancha prazeres!...
(Saem a discutir)
FERNÃO MENDES - Milagre de
deus Baco, o mensageiro de alegria! O diabo sai do sumo da uva e trepa aos
miolos e ao coração dos bebedores!
TANOEIRO (bebendo do jarro) - A uva pinta de sangue as nossas pernas!
É sangue de deus, é vinho que nos enche a barriga!
FERNÃO MENDES - Não vos
afogueis, mestre Tanoeiro! Tenho-vos na minha quinta para armar as pipas e não
para as vazar!...
CATARINA (rindo) - O senhor meu pai coroado de flores na cabeça!
Quando minha mãe entrar na adega…
FERNÃO MENDES (baila, folgazão) - … Convidá-la-ei para esta bela dança! (abraça as duas filhas e rodopia) Maria,
minha esposa, descalçai-vos, mostrai os vossos magníficos pés e bailai
connosco!
CATARINA - E ela
obedece-vos? Obedece-vos, senhor meu pai?
FERNÃO MENDES - Que ninguém
saia de dentro da selha!
JOANA (amedrontada) - O senhor
acredita que nossa mãe se atreva a pular para a selha?
CATARINA - Quem manda é
nosso pai!
JOANA - Mas a
senhora nossa mãe… é que nos bate! …
(entra a comadre que traz uma coroa de flores, seguida
por Simoa que perdeu a corrida. Lutam por momentos)
FELÍCIA - Mestre,
ponde a jeito a vossa cabeça!
SIMOA (a
disputar) - Aceitai as minhas flores tão bonitinhas, não queirais as
dela, mestre Brás!
CATARINA - Duas
galinhas para um galo!
(O tanoeiro baixa a cabeça e recebe as flores das mãos de
Felícia. Amuo de Simoa)
SIMOA (amarfanha
as flores, vencida) - Eu não esperava de vós uma nega destas!
FELÍCIA (radiante) - Ganhei eu! Ganhei eu! Ah! Sou tão forte! (com um ar irritante)
SIMOA - A comadre
ganhou porque eu deixei-vos passar à minha frente!
FELÍCIA (pirraça) - Bem feito! Bem feito!
SIMOA (ao
ouvido dela) - Já vos esquecestes dos negócios em que estamos metidas?
FELÍCIA - Que
negócios?
SIMOA (puxa para fora da adega) - Não vos façais de novas! (ao ouvido) As relíquias do santinho… (saem)
CATARINA - Mestre,
pondes ainda com essa idade duas mulheres a guerrear em vez de dois homens com
belos músculos?
TANOEIRO (que já não está muito são) - São velhas, menina, velha…
Para velho basto eu! Gado deste é que me atormenta, e me põe flores no toutiço!
Os passarinhos novos, sangue fresco e quente, mal peço um beijo, batem as asas.
JOANA - Catarina,
acreditais que a nossa mãe é senhora para vir pisar as uvas?
CATARINA - Ride, mana,
ride! E atirai as culpas para riba do nosso querido pai!
JOANA - E se a nossa
mãe pegar num pau e nos bater?
CATARINA - Canta,
Joana! Quem canta seu medo espanta! (canta)
-“ E aqui o meu namorado
este galante mocinho
perde o siso e o cuidado
quando se mete no vinho
e fica por seus pecados
vesgo o mais que nunca vi
tem os olhos enfrestados
se lho falares, ou assi,
Não saberás se olha a ti
se olha para os telhados
mas amorosos de mi
mui doces enamorados.”
SIMOA (entra e vaza uvas) - Não tarda nada vou chamar a senhora!
Depois quero ver se a dança continua!
FELÍCIA (entra, preocupada) - Quero falar convosco, comadre.
SIMOA - Se a tia
Felícia tivesse um naco de vergonha não me dirigia a palavra
FELÍCIA - Negócios são
negócios.
SIMOA - E daí?
FELÍCIA - O rosário
foi todo vendido. Conta a conta... já não tenho nada. E mais que houvesse.
Devo-lhe trezentos réis.
SIMOA - Por seu
conselho meti-me nessa mentira. Estou coberta de vergonha.
FELÍCIA - Eu sei,
comadre. Mas os reais têm-vos feito bom proveito. (Puxa-a para si)
Olhai que eu estava a brincar: não quero o homem para mim. Podeis ficar com
ele.
SIMOA - Se não o
queria... por que razão me não deixou flori-lo?
FELÍCIA - Lembrei-me
dos tempos de rapariga… (muda de assunto)
Agora temos que deitar mão às outras relíquias…
SIMOA - Que
relíquias?
FELÍCIA - São perguntas
que se façam aqui na adega?
(Saem)
CATARINA - Avançaste na
redação do vosso livro, meu pai?
FERNÃO MENDES - Ontem
trabalhei até tarde.
CATARINA - Haveis dito
no domingo que estáveis às portas do Japão.
FERNÃO MENDES - Já cheguei à
“pestana de mundo”.
CATARINA - O senhor meu
pai já contou a história do filho do rei? O que experimentou a sua espingarda e
que morreu ao dar um tiro?
FERNÃO MENDES - O príncipe
não morreu. Ficou muito ferido, perdeu um dedo polegar, mas eu curei-o com uma
mezinha. Ele encheu o cano de pólvora, meteu o pelouro e a arma partiu-se-lhe
em três partes. Dessa vez fui condenado à morte…
(Harpejos nipónicos. A luz torna-se
colorida, irreal. As figuras na lida do lagar, mas os gestos são agora lentos,
parecendo caminhar sobre nuvens. Simoa e Felícia continuam a vazar as uvas na
selha)
VOZ DE FERNÃO
MENDES - «Não havia ainda bem duas horas que estávamos nesta calheta de Miaygimá,
quando o príncipe desta ilha de Tanixumá, veio ao nosso barco acompanhado de
mercadores e gente nobre e com caixões de prata. Depois de se fazerem as
cortesias costumadas, ele chegou-se a nós, e vendo por nossas caras que não
éramos chineses, perguntou que gente éramos. O capitão corsário lhe respondeu
que vínhamos de uma terra chamada Malaca, para onde tínhamos vindo há muitos
anos de outra que se chamava Portugal.»
(Regresso à realidade
e aos movimentos normais)
RITA (entra, afogueada) - Meu senhor! Meu senhor!
FERNÃO MENDES - Que quereis?
RITA - Chegaram
duas mulheres e um homem que querem pedir uma coisa ao senhor! É gente
pobrezinha, mas muito delicada e de lágrimas piedosas!
JOANA (assustada) - Agora é que a senhora nossa mãe aparece!
FERNÃO MENDES - A minha
mulher que resolva. Eu não posso abandonar o baile!
RITA - Mas a minha
senhora, coitadinha, está muito exaltada, uma vez que desconhece a razão de tal
pedido muito empenhado.
FERNÃO MENDES - A senhora
que ponha fora essa gente! Não sou físico nem curandeiro!
RITA - Não são
mezinhas para a cura de maleitas, o que os pobres exigem!
FERNÃO MENDES - Querem
favores para a Santa Casa da Misericórdia?
RITA - Também não,
meu amo! Os tristes imploram relíquias... Relíquias milagreiras!...
FERNÃO MENDES - Relíquias?
Que relíquias?
RITA - Imploram
umas continhas. Entregam tudo quanto têm, meu amo, que é bem pouco. Os tristes
pedem as continhas do rosário que o senhor trouxe da Índia.
FERNÃO MENDES (a exaltar-se) - Eu não tenho relíquias nem vendo nada! Fala
claro, rapariga! Parva! Não sabes dar um recado como deve ser!
RITA (baralhada) - Valha-me Nossa Senhora do Amparo! Se calhar não
entendi.
FERNÃO MENDES - Voltai para
junto da minha mulher!
RITA - Mas os
pobres só falam no meu amo e nas relíquias! São umas continhas dum terço que
lhe deu o santinho das Índias!...
(Simoa e Felícia escutaram parte do
diálogo. Ambas tremem de medo. Rita chora alto)
FERNÃO MENDES - A minha
mulher que expulse essa gente e não perca mais tempo!
(Rita sai, a correr. As duas comadres, Simoa e Felícia, benzem-se,
aflitas)
JOANA - Que foi,
senhor meu pai?
CATARINA - Será por
terdes conhecido o santo padre Francisco Xavier?
FERNÃO MENDES - Estranha
coisa! Correm boatos que dizem que eu possuo objetos desse santo homem! Essa
mentira não para de crescer!
CATARINA - E agora,
senhor meu pai?
FERNÃO MENDES - A vossa mãe
sabe muito bem resolver estas situações!
(Regresso à narração do livro que
está a ser escrito. Outra luz e lentidão de movimentos das personagens. Felícia
e Simoa, em pânico, abandonam a adega)
VOZ DE FERNÃO
MENDES - «Nós os três portugueses, como não tínhamos mercadorias para nos ocupar,
passávamos o tempo a pescar, a caçar e a visitar templos. O Diogo Zeimoto, em
particular, gostava de disparar com uma espingarda e por isso chamou a atenção
de uns japoneses que nunca tinham visto uma arma de fogo como a dele.
Informaram logo o Nautaquim que, espantado com esta novidade, mandou logo
chamar o Zeimoto. Ao ver chegar Zeimoto com a espingarda às costas, dois
chineses carregados de caça, e desconhecendo o segredo da pólvora, o Nautaquim
e todos os japoneses convenceram-se que estavam perante atos de feitiçaria.»
(Surge Maria, seguida pelas comadres
Simoa e Felícia. A atitude violenta da primeira contrasta com a submissão e
medo das duas impostoras. Aos primeiros gritos da dona da casa, a cena regressa
à normalidade)
MARIA - Fernão
Mendes! Fernão Mendes! Tende respeito pelo vosso nome e pelo cargo que ocupais.
A pisar uvas com as filhas e ao lado do tanoeiro! (Enérgica)
Joana! Catarina! Meninas, para fora do lagar!
(As duas raparigas pulam da selha. Joana chora,
amedrontrada; Catarina solta gargalhadas. O mesmo ar divertido assalta o
escritor)
MARIA - Zombais,
Fernão Mendes?! A velhice roubou-vos o respeito. E consentis que as vossas
filhas prendadas, estejam de saias arregaçadas à barriga como qualquer serva?…
FERNÃO MENDES (desce
da selha e cobre-se com um largo pano vermelho e sujo, que está ali perto,
Sempre divertido) - Maria, colocais o meu nome e a minha pessoa num altar a
que não deseja subir!
MARIA - Estou farta
de ouvir as vossas histórias! Que todos repetem e que nos enchem de vergonha!
Sois um procurador de São Lázaro e Albergaria!
FERNÃO MENDES - Mas será
possível ter subido à vossa cabeça o cargo que eu desempenho na vila?
MARIA - Somos
finalmente alguém nesta terra e pareceis esquecer-vos disso! A vossa maneira de
falar e a confiança que dais aos empregados vai fazer com que não subais de
lugar na sociedade, Fernão Mendes! O tempo que passais a escrever vai acabar
por arruinar a vossa vida e a NOSSA!
FERNÃO MENDES - Perdeste o
juízo, mulher!
MARIA - Em lugar de
esconderes o que sofrestes, esses papéis vão pôr diante do mundo todas as
vossas desgraças, misérias e até … até … (Bruscamente) Eu nem
me atrevo a repetir. (Chora)
FERNÃO MENDES -Dizeis
sandices pela boca fora e rompeis depois nesse pranto? Não estais sã do
espírito, Maria Correia de Brito!
MARIA - Aqueles
papéis bisbilhoteiros deviam ser queimados! Sim, queimados! Atear uma fogueira
na quinta e reduzi-los a cinza!
CATARINA - Mãe!
Atentai, no que estais dizendo? Queimar a grande obra do senhor nosso pai?!
MARIA - Somos
pobres, muito pobres, minha filha! O vosso pai não se esforça, não dá um passo
sequer, para amealhar cabedais. (Cheia de mágoa) Já
foi muito rico, poderoso … mas deu tudo, meu Deus! … Que dote podemos prometer
aos homens que tentem casar convosco, minhas filhas?
CATARINA - Mas nenhuma
de nós foi pedida em casamento!
MARIA - Oh,
Catarina! Há tantas meninas da vossa idade que já estão casadas! Tendes 16
anos, com essa idade, e até menos, casaram já princesas de Portugal (Com mágoa) Mas sem
dinheiro nem rendimentos, aqui desterradas no Pragal, os melhores homens não
vos pegam. As viúvas ricas conseguem casar-se primeiro!
FERNÃO MENDES (tenta às boas apaziguar as queixas da mulher) - Minha boa e
santa mulher, quem vos desgostou para estardes tão fora de vós? (Tenta beijá-la)
MARIA (afasta-o) - Não me abraceis! Por ser vossa esposa mereço
maior respeito! Lavais-vos, vesti-vos por quem sois e vinde então para junto de
vossa mulher!
FERNÃO MENDES (senta-se num barril e indaga) - Que vos queria aquela gente
há pouco?
MARIA - Pediam
relíquias do santo Francisco Xavier.
FERNÃO MENDES - Relíquias do
padre-mestre?
MARIA - Umas contas
dum rosário espalhadas pela vila tem operado milagres. Os pais dum anjinho que
está a morrer imploraram uma conta para salvar a criança. Foi comovedor.
Ajoelharam-se a meus pés e prometeram ficar nossos escravos em troca da
salvação do filho.
FERNÃO MENDES - Que
dissestes a essa gente?
MARIA - O mesmo que
vós responderíeis, se estivésseis presente.
(Simoa tem um forte ataque de choro que a todos
surpreende. Rita é contagiada. Todos os outros estão imóveis.)
(Mutação)
ATO II
2º Quadro
(Tarde de Junho de 1578. Fernão Mendes escreve sobre a mesa. Papéis,
livros, utensílios de escrituração.
Idades:Fernão Mendes, 68 anos ; Maria, 34; Catarina, 16 ; Joana 15; Telmo
Pais,57 ; Simoa, 54; Tanoeiro, 51 e Rita, 31 anos)
VOZ DE FERNÃO MENDES - “Tem, para a parte do oeste, 5 ilhas
muito grandes, em que há muitas minas de prata, pérolas, âmbar, incenso e seda,
pau-preto, brasil, aguila brava e muito breu, ainda que a seda seja algum tanto
menos que a da China. Os habitadores de todas estas terras são como os chins,
vestem linho, algodão e seda, com alguns damascos que lhes trazem de Nauquim.
São muito comedores e dados às delícias da carne, pouco inclinados às armas,
que quase não têm, por isso parece que será muito fácil conquistá-los...”
MARIA (surge na entrada da
sala) – Fernão Mendes, as nossas filhas ainda não regressaram da
vila. O sol está a pôr-se, e eu começo a recear... Não será melhor verdes se
encontrais as meninas?
FERNÃO MENDES PINTO - A Simoa foi com elas?
MARIA - Bem sabeis que não consinto saídas sozinhas. Mas a
Catarina faz sempre o que deseja... (como o
marido mantém os olhos nos papéis, irrita-se) Fernão Mendes! Estou a
falar consigo.
FERNÃO MENDES PINTO - Ouvi muito bem o que acabaste de
dizer. As meninas estão na vila acompanhas pela nossa serva.
MARIA - Mas com este alvoroço que varre o reino: a tropa em
Lisboa, o Tejo a abarrotar de navios... a música... os tiros... Eu sei
lá se a Catarina não arrastou a Joana e a Simoa...
FERNÃO MENDES PINTO - ...para Lisboa? Não!
MARIA - Esta guerra que o nosso Rei D. Sebastião quer ir fazer
às Áfricas tem ensandecido muitas cabeças. Meu Deus! Que o dia de hoje não seja
o começo duma grande desgraça!
FERNÃO MENDES PINTO - (levanta-se
e enerva-se) Com mil raios, mulher, que agoiro estás p’raí a
conjeturar?
MARIA - Vós é que estais cego com a redação do vosso livro! “A
Peregrinação”! Esses malditos escritos, a toda a hora diante dos vossos olhos,
fazem esquecer-te das vossas responsabilidades. Nunca mais fostes à Santa Casa
da Misericórdia ver se havia trabalho para vós... voltais as costas à família e
à nossa quinta... Que vida é a vossa, Fernão Mendes? Só papéis, papéis, papéis!
(Espalha pela mesa o manuscrito, repugnada)
É este entulho que vos vai dar de comer? Já esquecestes quantas bocas temos
debaixo destes tetos?
FERNÃO MENDES PINTO (socorre
os papéis, indignado) - Maria! Atreveis-vos? Ide ao médico, mulher!
Tendes trinta e quatro anos, pensais e ralhais como uma velha rabugenta!
MARIA (soluça) -
Estou velha, estou! Agora é que acertastes! Velha e mortificada de ralações e
de trabalhos.
FERNÃO MENDES PINTO (paciente)
- Maria, governai a vossa casa. tendes duas servas e um tanoeiro. Por altura
das colheitas havemos de contratar mais uns braços para nos ajudarem. Quem está
velho e sem forças sou eu que já tenho 68 anos! Alguma vez as amizades de
prestígio e a Mesa da Misericórdia se atreveriam a não me ajudar? Acalmai-vos!
Se as nossas filhas vos disseram que iam visitar a casa de D. João de Portugal…
foram mesmo, e vós sabeis a boa conta em que essa família nos tem…
MARIA - Mas a guerra que vão fazer nas Áfricas? O arraial de
Lisboa?
FERNÃO MENDES PINTO - Estamos em Almada. Há o rio pelo
meio. O arraial não é nesta banda. (Suspira,
dolorosamente) Doente e bem doente, estou eu. Passo as noites, cheio
de dores pelo corpo!
MARIA (Ironicamente)
- Doente, doente... é a escrita que vos cansa? Para isso tendes
vós forças e dedicação! Se desses papéis viesse algum dinheiro, que bem
precisamos… mas não, destinam-se a ficar num armário esperando que o bolor os
devore! Meu Deus, que falta me faz o meu saudoso pai, um verdadeiro homem…
FERNÃO MENDES PINTO - Vamos pôr ordem nesta conversa! O
vosso problema é eu escrever ou a demora das nossas filhas?
MARIA - Se as nossas filhas embarcaram num barco... e andam
perdidas em Lisboa, numa espécie de feira de loucura e abusos onde os lisboetas
se divertem. Há soldados espanhóis, alemães e até o Papa… Em Lisboa bebe-se,
dança-se, joga-se, rouba-se… acasalam-se homens com mulheres que nunca se
viram… uma chafurdice pegada… rixas e mortes atravessam a cidade. Tenho medo,
Fernão!
FERNÃO MENDES PINTO - Já vos disse que as nossas filhas
são mulheres ajuizadas!
MARIA - Parais com vossas loucuras! A nossa Catarina, é
terrível, sai a vós, arde de fome e febre de viver, tem as mesmas loucuras que
vós!
FERNÃO MENDES PINTO - Parai com isso, mulher!
MARIA - A vossa cabeça ainda anda nas Índias e pelas Chinas!
Cai-me tudo em cima! Nunca sabeis o que se passa nesta casa, se o trigo deve
ser vendido, ou se o tanoeiro Brás se embebedou com o medo de ser arrebanhado
para a tropa...
FERNÃO MENDES PINTO - Sossegai! A partir de agora eu
prometo dar mais atenção à casa e à quinta (ele
estende-lhe os braços e ela cede).
RITA (à entrada, com
alvoroço) - Minha senhora! Minha senhora!
MARIA - As meninas estão de volta?
RITA - Elas vão chegar daqui pouco tempo, estão no carro do
senhor Telmo Pais, conhece-o bem.
MARIA - Deus seja louvado! (sai, ligeira)
FERNÃO MENDES PINTO - Vamos lá ordenar os papéis…
VOZ DE FERNÃO MENDES - «Desta breve informação que tenho
destes léquios, se pode entender, e assim o cuido eu pelo que vi, que com
quaisquer dois mil homens se tomaria e senhorearia esta ilha, com todas as mais
destes arquipélagos, donde resultará muito maior proveito que o que se da
Índia, e com muito menos custe, tanto de gente como de tudo o mais, porque
somente do trato nos afirmaram mercadores com quem falámos, que rendiam as três
alfândegas desta ilha léquia, um conto e meio de ouro, fora a massa de todo o
reino, e as minas de prata, cobre, latão, ferro, aço, chumbo e estanho, que
rendiam ainda muito mais que as alfândegas »
(Entram: Catarina, Joana, Maria e Telmo Pais. As filhas correm a beijar o
pai. Fernão Mendes e Telmo Pais cumprimentam-se)
CATARINA - Obrigada, senhor Telmo Pais para nos
ter recebido em vossa casa, eu adorei visitar a D. Madalena e o senhor D. João!
MARIA E FERNÃO MENDES PINTO - Muito
obrigado, Telmo Pais, pelos cuidados com as nossas filhas!
TELMO PAIS - De nada, elas são adoráveis!
FERNÃO MENDES PINTO - D. João de Portugal anunciou já a sua
hora de embarque?
TELMO PAIS - Esse também é o motivo que me traz à
vossa presença, Fernão Mendes. Meu amo pede-me que vos dê conta do desejo de
convidar-vos para uma ceia de despedida. D. João quer ter à sua mesa os amigos
íntimos antes de partir.
FERNÃO MENDES PINTO - Mas há tropas que ainda não
chegaram.
TELMO PAIS - Sim, el-rei D. Sebastião quer
arrancar quanto antes do Tejo. Há estrangeiros que seguem diretamente dos seus
países para o norte de África. Lisboa está irreconhecível com tantas e variadas
gentes.
FERNÃO MENDES PINTO - Não me sinto capaz de atravessar o
Tejo, sinto-me doente e além de tudo, estou apaixonado pelos papéis… O meu
livro, A Peregrinação ganha corpo dia a dia.
TELMO PAIS - Francisco de Andrade confessou-nos
que se sentiu arrebatado com a leitura das primeiras páginas.
FERNÃO MENDES PINTO - Exageros de quem nos estima! Além
disso ainda não consegui escrever o mais difícil. Ainda nada disse sobre São
Francisco Xavier! Daí o andar ansioso. Não posso morrer sem o fazer. Aquele
homem tem de ficar eternamente marcado no livro! Como se sente o vosso amo
prestes a embarcar?
TELMO PAIS - D. João de Portugal é aquele
cavaleiro nobre e de virtudes imensas. Prepara-se para deixar o país e fazer a
guerra à moirama muito o entusiasma. Mas a esposa, a D. Madalena vive
inconsolável e isso quebra o mais forte e valente dos cavaleiros.
FERNÃO MENDES PINTO - Compreendo.
MARIA - Senhor Telmo Pais com vossa licença, nós retiramo-nos.
(Mãe e filhas saem)
TELMO PAIS - Para D. Madalena têm sido noites de
lágrimas. Por isso meu amo me impede de embarcar com ele.
FERNÃO MENDES - Certo, a vossa presença junto de D.
Madalena é um bom consolo.
TELMO PAIS - A minha senhora tem vivido
horas de febre e delírio... Perdoai-me este desabafo… Que cenas se têm vivido
ao abrigo daqueles tetos!
(Os dois homens calam-se. Simoa entra, faz vénia. Traz um alguidar com
os alimentos para confecionar. Mexe na lareira. Os dois homens observavam a
serva.)
TELMO PAIS (rompe
o silêncio) - São horas de regressar, Fernão Mendes Pinto. Tenho o
tempo contado.
FERNÃO MENDES PINTO - Dizei a D. João que estarei presente
na ceia.
(Encaminhando-se para a saída. Entra o Tanoeiro, de cabeça entrapada).
FERNÃO MENDES PINTO - Mestre Brás… nós temos muito que
falar…
TANOEIRO - Sim, meu senhor!
(Telmo Pais e Fernão Mendes Pinto saem).
TANOEIRO (comprometido)
- Simoa…
SIMOA (de costas)
- Que me quereis?
TANOEIRO - Entender-me convosco…
SIMOA - Ide para a vossa toca! Já está o mundo farto!
TANOEIRO - Naquela noite eu não estava
consciente do que fazia, mulher! Um homem bebe para esquecer, e nem
sempre dá conta do vinho que bebe.
SIMOA - Estou mouca! (rindo-se)
Quem não sabe beber vinho, bebe xixi!
TANOEIRO (humilhado)
- ‘Tá visto que não quer falar mais comigo, não é verdade? (sem resposta e aproxima-se) Porque não
pomos uma pedra nessa zanga?
SIMOA (explode)
- Odeio bêbados, borrachos, homens que não respeitam a virtude e a fraqueza das
mulheres, ouviu seu cacho de uvas?!
TANOEIRO - Fraca tu? Se não tivesse o pé
ligeiro tinha morrido nas tuas mãos! Virtude? Com a tua idade ainda és virgem?
Não me tomes por parvo!
SIMOA - Aiiiii! Querem ver? Já bebeste hoje? Já vieste
atestado práqui?
TANOEIRO (cruza
uma perna sobre a outra, desafiando o equilíbrio) - Estou sãozinho
como um pêro, Simoa!
SIMOA - Pois ficai sabendo que nessas minhas partes (aponta as coxas) nenhum homem bateu
semente!
TANOEIRO (abismado)
- Na vossa idade?!
SIMOA (solta uma
gargalhada) - E ele a dar-lhe! Como qualquer donzela prendada!
TANOEIRO - Meu Deus! Um homem não é bruxo nem
adivinhão!
SIMOA - Animal! Selvagem! Quisestes-me roubar a
virgindade!
TANOEIRO - Nessa noite estava fora de mim…
Juro-vos!
SIMOA - Cobardola! El-rei a chamar homens para a guerra contra
os infiéis da nossa santa religião e você a brutalizar mulheres!
TANOEIRO - Não mistureis a bota com a
perdigota, nem alhos com bugalhos. Uma coisa é ir para a guerra contra os
mouros, outra coisa é sentir paixão por vós, tia Simoa!
RITA (entra e fica
admirada) - Por aqui, mestre Brás? Não vos fazia agora tu-cá-tu-lá
com a tia Simoa!...
TANOEIRO - Não posso andar por onde quero e nem
falar com quem me dá satisfação? É preciso ter uma autorização?
(Simoa solta uma gargalhada, é seguida pela outra serva e, por fim, mestre
Brás ri também. De súbito aparece a dona da casa)
MARIA (num grito)
- Que comédia é esta?
(Mutação)
ATO II
3° QUADRO
(Noite de Dezembro
de 1578. Fernão Mendes escreve alumiado por duas velas. Da quinta chegam-nos o
ruído do vento e o uivar dos lobos)
FERNÃO MENDES
PINTO - Malditos lobos! Este Inverno ainda nos comem os animais! (Ergue-se e dirige-se para fora) Simoa! Mestre Brás! Ponde
mais lenha na fogueira! Afastai as feras do curral e das capoeiras! (Volta para a mesa, retoma a escrita)
VOZ DE FERNÃO
MENDES PINTO - O padre Francisco Xavier costumava pregar duas vezes
por semana, e, no final de cada um dos sermões, ao longo de dois meses, pedia
aos fiéis que rezassem um Pai Nosso e
uma Avé Maria pelos portugueses que
andavam a espalhar a fé de Jesus Cristo por entre os mouros.
(Música sacra, e surge da penumbra o padre-mestre
Francisco Xavier, envergando o hábito da Ordem)
FRANCISCO
XAVIER (dirigindo-se ao público) - Meus irmãos,
não vos peço nada. O que mais gosto é de converter as pessoas para elas poderem
aproveitar o amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Um dia, converti um bonzo de
Canafama que tinha grande influência na sua comunidade de tal forma que depois
de ter adoptado a nossa religião, mais de quinhentas pessoas quiseram logo
batizar-se. Aí apercebi-me que também havia bonzos que aconselhavam mal as
pessoas e as assustavam. Bonzos houve que disseram às pessoas que se haviam de
perder se se convertessem ao cristianismo. Chegaram mesmo a dizer-lhes que só o
fizessem pedindo-me muito dinheiro em troca da conversão! dinheiro que me
pediam e assim procuravam mostrar às pessoas que tudo o que eu dizia era
mentira porque se fosse verdade eu dar-lhes-ia o dinheiro que me pediam. Mas
Deus Nosso Senhor há de proteger-me de tanta difamação!
(Entretanto, foram aparecendo alguns bonzos, de crâneo
rapado, trajando opas vermelhas. Discutem acaloradamente numa algaraviada
ininteligível. E gesticulam, e dão corridinhas em redor da sala. O padre
Francisco Xavier acende o turíbulo e espalha incenso. Mas entra o Bonzo Maior,
este fisicamente avantajado, com um abanico, que tenta afastar o incenso)
BONZO MAIOR (avança para o Jesuíta e, depois de várias vénias, fala-lhe)
- Permitis uma simples pergunta?
FRANCISCO
XAVIER - Dizei.
BONZO MAIOR -
Conheceis-me?
FRANCISCO
XAVIER - Não. Não vos conheço.
BONZO MAIOR (volta-se para os irmãos, sorrindo) - “Bem pouco há que
fazer com ele, já que não me conhece… (Faz
nova pergunta ao Jesuíta) Tendes ainda daquela fazenda que me vendeste em
Frenojama?”
FRANCISCO
XAVIER - “Não respondo a coisa que não entendo, por isso fala mais claro, e então
te responderei, porque se eu nunca fui mercador, nem sei onde é Frenojama, nem
falei nunca contigo, como te havia de vender fazenda?”
BONZO MAIOR - “Parece-me
que deves ter ruim memória.”
FRANCISCO
XAVIER - “Já que me esqueci, lembra-me.”
BONZO MAIOR (com aspecto soberbo) - “Faz agora mil e quinhentos anos que
me vendeste cem picos de seda, em que ganhei bom dinheiro.”
FRANCISCO
XAVIER - “Que idade tens?”
FRANCISCO
XAVIER - “Ora pois se tu não tens mais que cinquenta e dois anos, como é possível
haver mil e quinhentos anos que foste mercador, e me compraste fazenda? E se
também o Japão não tem mais de seiscentos anos que é povoado, como pode haver
mil e quinhentos que eras mercador em Frenojama, que naquele tempo, segundo
parece, devia ser terra deserta?”
BONZO MAIOR - O que não sabes é que o mundo não tem princípio nem fim. Antes dessa vida já vivemos muitas outras. Quem tem boa memória sempre lhe fica lembrando o que fez.”
(A cena agora é descrita pelo autor, sendo mimada pelos religiosos)
VOZ DE FERNÃO MENDES PINTO - “O padre, respondendo-lhe a este seu falso argumento, lho desfez por três vezes, com palavras e razões tão claras e evidentes, e por comparações tão próprias e naturais que o bonzo ficou confuso.”
(Ao ouvirem-se as últimas palavras, acende-se um resplendor na cabeça de Francisco Xavier. Os bonzos recuam, assombrados. Mas o Santo continua a mimar a exemplar argumentação)
VOZ DE FERNÃO MENDES - “E neste tempo os bonzos todos, a fim de o embaraçarem, ou de o desacreditarem lhe perguntaram por coisas que o entendimento humano nunca imaginou, e ao lado destas, por outras serem tão simples e fáceis que qualquer pessoa lhes poderia responder com pouco trabalho. E algumas vezes tratavam também de matérias altas e de muito peso, em que houve muitas altercações de ambas as partes…”
FRANCISCO XAVIER (pede ao público) - Irmãos meus, oremos em conjunto para que o Senhor me inspire neste duelo com estes ministros do Demónio, perturbadores da lei de Deus.
(Durante momentos escuta-se o murmúrio das orações, terminando com o sinal da cruz)
BONZO MAIOR - “Padre,
reparaste já que deus é inimicíssimo de todos os pobres, pois lhes nega todos
os bens, fortuna e vida regalada com que presenteia os ricos e os poderosos?”
FRANCISCO
XAVIER - Deus é inimigo dos pobres?!
BONZO MAIOR - Ainda não
haveis reparado?
VOZ DE FERNÃO
MENDES PINTO - “Esta falsa proposição lhes contrariou o padre, com
razões tão claras, tão aparentes e tão verdadeiras, que os bonzos, ainda que
lhe replicassem duas vezes, todavia como a verdade não tem resposta que tenha
eficácia, lhes foi forçoso, apesar da natural ufania e presunção,
condescenderem com o que lhes disse o padre.”
(Os bonzos trocam olhares entre si, e voltam-se para o
Santo, movendo a cabeça, vencidos. Rompe um canto gregoriano. Francisco Xavier
retira-se, iluminado)
(Mutação)
ATO II
4° QUADRO
(Fevereiro de 1580. Maria cose junto
da lareira. Catarina, debruçada na mesa, lê algumas páginas do trabalho do pai)
VOZ
DE CATARINA - “Esta mulher, quando desembarcou neste
Porto, o rei de Passarvão a foi buscar ao barco em que vinha, e a levou para a
sua casa, e a agasalhou com a rainha sua mulher, e ele se passou para outro
aposento longe dali, porque esta era a maior honra que se lhe podia fazer. A
razão por que este recado veio mais por mulher que por homem, vem de um costume
antiquíssimo dos reis destes reinos, desde o princípio, trataram as coisas de
muita importância, e em que se requer paz e concórdia, por mulheres...”
MARIA
(interrompe a costura e tenta despertar a filha da
leitura) - Catarina! Acordai,
menina! Quando vos debruçais sobre os papéis do vosso pai, pareceis uma
tonta!...
CATARINA
- Que
quereis, senhora?
MARIA
- Falar
convosco, combinar os trabalhos entre mãos! Já deste fé da serva em que a vossa
pobre mãe se transformou? Não queres cozinhar, nem queres cozer... Que vida é a
vossa, minha filha?
CATARINA
- Senhora,
dizeis que não trabalho? Tendes má memória. Quem ajuda nas ceifas? No mês das
vindimas, quem labuta no lagar? Quantos recados faço na vila...?
MARIA
- Catarina,
minha filha, não deveis lembrar esses serviços! Uma senhora deve ser prendada,
ter as melhores mãos para os bordados e para conforto de sua casa. Deixai de
ser criança e para com as brincadeiras na quinta. Sois uma senhora!
CATARINA
(divertida) - Minha mãe sonha com um
homem de linhagem para esta sua filha!
MARIA
-
Tenho horas em que duvido se nascestes senhora... tu és demasiado viril!
CATARINA
(numa exaltação) - Senhora, eu nasci para
viver as aventuras de Fernão Mendes Pinto! Combater pela dilatação de Fé e do
Império! Dispersar mouros e turcos!
MARIA
- Calai-vos,
Catarina! Calai-vos malcriada! Respeitai a família dos Correias e dos Mendes!
CATARINA
- Correr
mundos e povos desconhecidos! Voar sobre as águas!... (Baila pela casa)
Voar, voar...!
MARIA
(grita, fora de si) - Catarina! Catarina, não
me ouvis?
CATARINA
(cai num cadeirão e sopra) - Voltei ao reino. (Noutro tom) Dizei, senhora?
MARIA
- Na
vossa idade bordava eu o enxoval para receber vosso pai!
CATARINA
- Um
homem com posses! Já reparastes que essa ideia não sai da vossa mente?
MARIA
- Mas
toda a mãe, digna desse nome, não deve esquecer o casamento das suas filhas. E
sabe Deus os tormentos que passamos nos dias de hoje para encontrar um noivo
com posses e dinheiro para uma donzela (esfrega o polegar no indicador
para representar o dinheiro). Oh! A debandada dos homens para a
Índia enche-nos de viuvez!... Os campos sem braços, as mulheres solteiras... No
reino só as viúvas ricas conseguem os melhores partidos. Vede o senhor
Francisco de Andrade que casou na vila com uma viúva riquíssima da nossa melhor
fidalguia!
CATARINA
- Senhora,
tendes má memória e estais esquecida de muita coisa. Cultivar a terra é que dá
de comer, foi assim que eu e a minha irmã fomos educadas, tal como a mãe. Já
graças ao pai sei ler e escrever com muito gosto.
MARIA
- Faltais
à verdade, Catarina.
CATARINA
- Oh
minha mãe, sei muito bem o que vos digo!
MARIA
-
Sabeis, sabeis...
CATARINA
- Mas
aqui em casa a vossa vontade não estende só as garras para mim e para Joana (Olha-a bem de frente, altiva). Há outra pessoa que sofre
ainda mais. Não adivinhais quem seja?
MARIA
- Vosso
pai sofre por minha culpa? (Ela não lhe responde e vai
arrumando as folhas dos manuscritos). Dizei em quê, Catarina?
CATARINA
-
Quantas vezes discutistes com ele quando escrevia a sua Peregrinação? Já vos esquecestes que chegastes mesmo a ameaçar
queimar todas as folhas que ele escreveu?
MARIA
- Filha,
avaliais os perigos que rondam esta casa?
CATARINA
- Perigos?
Que perigos?
MARIA
-
Sois uma cabeça no ar! (Segreda-lhe, medrosa) Eu
bem tenho sofrido com as perguntas dos confessores sobre esta escrita do vosso pai. Os doutores da
Igreja estão inquietos e temerosos com o que ele pode ter posto nestes papéis. Só eu e Deus
conhecemos o tormento das minhas confissões. A Inquisição ronda por aí...
CATARINA
- Senhora,
Fernão Mendes Pinto tem lido partes inteiras da Peregrinação a muitos padres! Há meses esteve um dia inteiro em
Vale Rosal a ler as partes da China e do Japão. E não era só para os irmãos
portugueses da Companhia de Jesus. Havia a ouvi-lo dois padres espanhóis. Meu
pai sabe muito bem o que escreve. Tende em conta os elogios e o entusiasmo do
senhor Francisco de Andrade, o provedor da Santa Casa da vila!
MARIA
- Deus
vos oiça, Catarina! Deus vos ouça! Eles continuam a queimar tantos infelizes no
terreiro do paço! E quando não os queimam, ferram-nos. (Noutro tom)
Reparastes já como o vosso pai anda doente e alquebrado?
CATARINA
- Tem
setenta anos, mãe! Setenta anos de muito trabalho e tormentos. Há no seu corpo
a vida de muitas vidas.
MARIA
-
Meu Fernão Mendes já não é o mesmo depois de ter acabado de escrever esta obra.
Receio o que possa acontecer…
CATARINA
-
O Inverno castiga-o sempre. Sabeis muito bem como a carne é cheia de
cicatrizes. Quando chega o frio, ele envelhece. Daqui por três meses, há-de vir
a Primavera.
(Catarina vai colocar o manuscrito
numa prateleira, junto de outros cadernos. Um momento sem palavras)
MARIA
- Se
tivermos a grande fatalidade de ele morrer… já destes conta de como esta vossa
mãe ficaria com duas mulheres a seu cargo?
CATARINA
-
Senhora, não vos irriteis tanto comigo! Para a realização do sonho de um bom
partido para vossas filhas deve bastar-vos a grande promessa que é a Joana. (Com insistência, para convencer a mãe) A minha irmã segue
religiosamente o modelo de filha prendada. Cedo voltou as costas aos trabalhos
na quinta e sό se sente feliz a viver na
casa das melhores famílias da cidade. Não abandonou a dona Madalena de Vilhena,
depois da morte de D. João de Portugal na batalha de Alcácer-Quibir. Há quantos
meses ela não visita o Pragal?
MARIA
-
Vossa irmã, vossa irmã… Por minha vontade ia lá buscá-la!
CATARINA
(carinhosa) - Não vos irriteis
comigo, minha mãe. Respeitai a natureza que Deus me deu. Que ideia a vossa
sobre os medos do pai!
MARIA
-
De noite bem oiço seus gemidos e até lhe enxugo as lágrimas que lhe escorrem
pelo rosto.
CATARINA
-
A guerra de África, minha mãe, a guerra da África! As mortes do rei D.
Sebastião e D. João de Portugal e da fina flor da nossa gente que ele tanto
estimava. Os resgates que os mouros pedem ao rei D. Henrique… O nosso querido
pai sente todos os sofrimentos que caíram em cima deste país! Temos um rei velho
e sem filhos, os espanhóis rondam o nosso trono… (ouve-se o início do hino de Espanha)
Não são razões mais do que suficientes para afligir um português digno desse
nome?
MARIA
-
Mas esse negócios não dizem respeito à nossa família. Graças a Deus não tivemos
ninguém na batalha de Alcácer-Quibir! (Noutro tom…) O que
mais conta na vida é o dinheiro. (esfrega o polegar no indicador
para representar o dinheiro) Foi sempre assim. Os que embarcam para
a Índia não o fazem com a ganância do lucro? Não foi esse sonho que levou vosso
pai para essas terras do fim do mundo?
CATARINA
-
Senhora, não sois casada com um qualquer… Fernão Mendes Pinto não é da mesma
laia dessa gente que por aí anda.
MARIA (contrariada) - Tem coisas boas, tem coisas más… Foram os
bons sentimentos que tanto elogiais que o levaram a perder uma tão grande
riqueza! Mereceu a pena? De volta ao reino deram-lhe algum pago por tanta
caridade e sacrifícios?
CATARINA
-
O meu adorado pai é um grande homem! Tão grande e diferente dos outros homens…
e vós, mãe, sois incapaz de ver a sua verdadeira grandeza!
MARIA
(enfurecida, agarra numa colher de pau da cozinha e faz
menção de bater-lhe) - Catarina! Faltais ao respeito à vossa
mãe?! (A filha enfrenta-a corajosa. A mãe hesita, começando a
chorar) Todos nesta casa me querem enlouquecer! Ninguém me respeita,
ninguém escuta as minhas razões!
SIMOA (que assistiu à zanga - a serva está envelhecida e
desleixada, cabelos em desalinho e roupas sujas - exclama) - Valha-me Deus! Que desordem,
minha senhora!
MARIA (descarrega a ira sobre a serva) - Tu também és culpada dos
meus sofrimentos nesta desgraçada casa!
SIMOA
- Que
mal fiz eu, minha senhora?
MARIA
- Põe
os olhos no teu descuido, mulher! Esses cabelos, as nódoas que trazes nessa
roupa! Foi para tanta porcaria que aceitaste o Brás como marido? Não te lavas,
não te penteias, cheiras mal que até dás vómitos!... (gesto de apertar
o nariz em sinal de mau cheiro) Porca, refinada porca! Nem pareces a
Simoa da casa dos meus pais!
SIMOA (faz beiço e acaba
por chorar) - Vós é que já
não sois a mesma menina que andava ao meu colo!
(Catarina observa sem intervir. E nota-se a sua tomada de
consciência da grande mudança operada nas pessoas lá de casa)
MARIA - Não me dês
conselhos! Lava-te, lava-te primeiro! Agarra num sabão, enche uma selha de água
e ensaboa-te bem! Com esse cheiro não tocas tu nas panelas nem na comida!
TANOEIRO (entra com um
pequeno barril e,ao ver a mulher a chorar, poisa a vasilha) - Que barulheira é essa, Simoa?
SIMOA - Não são contas
do teu rosário!
TANOEIRO - Porque estás a
chorar tantas lágrimas?
SIMOA - As lágrimas são
minhas!
TANOEIRO - Mas eu sou o
teu homem!
SIMOA - A mim não me
forças a falar! Se ameaçavas a tua antiga mulher, comigo isso não!
TANOEIRO - Olha qu’eu peço
licença à senhora e parto-te aqui mesmo as trombas!
SIMOA - Atreve-te!
Atreve-te! Se tivesses vergonha na cara, não levantavas a voz! Tu que ficaste
com tanto medo quando o pessoal do rei andou por aί a arrebanhar tropa para a guerra de
África!...
TANOEIRO (arma um manguito) - Olha… toma! Se me tivessem arrebanhado com uma lança nas
unhas… estava agora morto na terra dos mouros como el-rei D. Sebastião! (Largos gestos) Não fui! Não fui! E disso não sinto remorsos
nenhum!...
MARIA (explode,
quebrando a colher de pau no tampo da mesa) - Calai-vos!
Quero respeito na minha casa! Mais alto do que eu ninguém fala!
RITA (da porta) - O senhor Fernão Mendes Pinto está vindo do caminho do
monte! Desceu já e traz o animal pela corda.
(Catarina sai, a correr. O tanoeiro pega no barril,
coloca-o sobre as costas e retira-se. Simoa persegue o marido. Maria, exausta,
senta-se, colocando a mão sobre o peito)
FERNÃO MENDES
PINTO (entre abraçado a Catarina) - Morreu o rei D.
Henrique!
MARIA - Ai meu Deus!
FERNÃO MENDES
PINTO - Em Lisboa, receia-se a chegada do rei Filipe de Castela. Ele é um dos
herdeiros do nosso reino. (Senta-se cansado) Dai-me
um pouco de água.
MARIA (dando um copo de
água) - E agora, Fernão Mendes Pinto…?
FERNÃO MENDES
PINTO (bebe um golo) - Não temos um príncipe!
Portugal fica à deriva. Filipe de Castela e os seus agentes têm uma vasta terra
para negociar.
CATARINA - E D. António
Prior do Crato? Ele é filho do infante D. Luίs.
FERNÃO MENDES
PINTO - D. António tem por si o pobre povo desarmado e ignorante e meia dúzia de
fidalgos e homens de Igreja. É muito pouco para se oporem à tempestade que se
avizinha. Quanto à duquesa de Bragança, também pretendente, e ao duque, tudo
indica que se vão aliar a Filipe de Espanha.
MARIA - Não há de uma
alma cristã interessar-se com tudo o que está a acontecer nesta terra.
FERNÃO MENDES
PINTO - Sossegai, sossegai… Afastai da cabeça toda esta agitação. Lisboa fica na
banda de lá do Tejo.
MARIA - Mas é por vós,
Fernão Mendes, por tudo o que vos possa acontecer. Sois tão conhecido, fala-se
tanto no vosso nome... Essa gente não vos vai pôr de fora dos seus negócios...
Acho eu.
FERNÃO MENDES
PINTO (sorri) - Acreditais
nisso? Que eles me queiram ouvir?
MARIA - Talvez quando
tudo se arrumar, e tivermos um novo rei… os governadores paguem o que vos
devem.
FERNÃO MENDES
PINTO - Pouco espero de Portugal. Estou velho e desiludido para ter esperanças,
mulher. (Aproxima-se) Abraçai-me (Maria obedece) E
vós, Catarina (Fraterno, no meio de ambas) Com as
duas e a Joaninha estou no meu reino. Lembro um velho rei que foi meu amigo e
que tinha duas filhas…
MARIA - Mas devem-vos
tanto dinheiro, meu querido. E nada possuímos para entregar como dote das nossas
filhas.
CATARINA (desfaz o abraço) - Meu pai, li hoje tantas folhas do vosso livro! Amanhã
acabo. Cada vez adoro mais o vosso livro.
MARIA - Catarina,
permites que vossa mãe faça uma pergunta ao pai?
CATARINA (numa vénia) - Tende a
bondade, senhora minha mãe.
MARIA - Fernão Mendes,
se Filipe de Castela for aclamado como rei de Portugal e se ele vos oferecer
uma remuneração avultada… não a aceitais?
FERNÃO MENDES
PINTO (senta-se à mesa, passa as mãos pelo ventre e pergunta) - O que é o jantar… é que estou com muita fome! (Assobia de maneira a fingir que não ouviu a pergunta da mulher. Catarina
tem um forte ataque de riso)
(Mutação)
ATO II
5° QUADRO
(Dia de São Pedro (29 de junho) de 1852. Tarde. Fernão Mendes
Pinto está sentado num cadeirão junto da chaminé. Lívido e alquebrado, acomoda
uma manta sobre os joelhos. Adivinha-se-lhe uma debilidade crescente)
TANOEIRO (aparece um pouco depois) - Que festejos, meu senhor ! Nunca
vi tanta gente numa festa! Não imagina o número de barcos que acompanharam os
navios reais. A música, os tiros… Que loucura meu senhor!
FERNÃO MENDES - Onde estão
as meninas e a senhora?
TANOEIRO - Estão todos
à rocha para ver as cerimónias. O rei Filipe de Espanha já deve estar a chegar.
(Noutro tom, mais baixo) O senhor estava a
dormir, dói-lhe o peito?
FERNÃO MENDES - Que dia é
hoje?
TANOEIRO (gravado) - Dia de São Pedro. O rei Filipe ficou duas
semanas em Almada. Dizem que fizeram grandes obras no Palácio da Ribeira para o
receber. Ainda bem que o espanhol se foi embora. Eram tantos os fidalgos e
tantos os padres, bispos e outros iguais a esses… Que loucura, meu senhor! Toda
aquela fidalguia queria ser recebida pelo rei espanhol para pedir coisas. Não
está certo, meu senhor! Os pobres e os infelizes eram afastados pelos soldados
e os oficiais. Todo aquele que sofria de fome não tinha ordem de falar ao rei.
Os senhores das terras e das casas é que tinham as portas abertas para os
pedintes. Que pensa o senhor sobre isto? (Aproxima-se do amo, que
adormeceu ) Oooh, Senhor Fernão Mendes… Adormeceu, o pobre…
(Ouve-se falar fora de cena. Chega Simoa)
SIMOA - Ó camarada!
Estás aqui. Abalaste duma maneira, parecia que vinhas a acudir a um fogo.
TANOEIRO - Tantos
barcos dos nossos pegados ao rabo do homem! Cambada de cães rafeiros a lamber o
dono!
SIMOA - É o nosso
novo rei! Rei Filipe de Portugal! Quanto maior amizade e carinho lhe
mostrarmos, melhor será o seu governo.
TANOEIRO (pede silêncio) - Fala baixo, mulher! O nosso amo está a
dormir.
SIMOA - Então mas se
está a dormir, não ouve! Deixe-o descansar coitado.
TANOEIRO - Não é com
barulho que ele há de descansar…
SIMOA (ignorando o TANOEIRO) - A sua vida está por um fio. Que Deus
me perdoe, mas ele não chega vivo às vindimas! Está a gemas e caldos de
galinha. Não engole uma fruta sequer... e precisamos de pelo menos 5 frutos e
legumes por dia… (Ouve-se em francês excerto da publicidade que diz
esta ideia) Convida-o) Vamos lá para dentro, camarada.
(Saem ambos, com passos cautelosos. A luz baixa, ficando
dois focos a iluminar o escritor e o manuscrito, que está na prateleira)
VOZ DE FERNÃO
MENDES: « Porque te afirmo que todos te mentiram, e fia-te de mim porque sou
muito rico e não te hei de mentir como homem pobre. (Repete)
Fia-te de mim porque sou muito rico e não te hei de mentir como homem pobre. (Quase o eco) Como homem pobre… pobre… pobre... pobre…
(Sobe um canto religioso, que vai servir de fundo musical
à narração do escritor)
VOZ DE FERNÃO
MENDES: «...Depois que os budistas lhe propuseram alguns argumentos, lhe quiseram
provar por diabólica filosofia que Deus era o inimigo de todos os pobres, dizendo
que lhes negava os bens que dava aos ricos, que isso era um sinal de que não os
amava. Esta falsa proposição contrariou o padre Francisco Xavier, com razões
tão claras, tão aparentes e tão verdadeiras, que os budistas, ainda que lhe
replicaram duas vezes...»
(O canto sobe de intensidade por momentos, baixando
depois para nova narração)
VOZ DE FERNÃO
MENDES - «….No outro dia, logo que foi manhã clara, o capitão Duarte da Gama
acompanhado de todos os mercadores e outros portugueses, organizaram uma reunião
para se decidir como é que o padre havia de se apresentar nesta primeira visita
com el-rei do Bungo, e por todos foi combinado que para homem de Deus ele fosse
com maior aparato que pudesse ter, porque com isso os budistas passariam por
mentirosos no que tinham dito sobre ele….»
( Separador musical. Atravessa a cena Francisco Xavier,
ricamente vestido….)
«...O padre levava uma bola de
chamalote preto sem águas, com uma sobrepeliz em cima...»
( Catarina entra na sala e aproxima-se do pai. Cessa a
evocação)
CATARINA - Senhor meu
pai….
FERNÃO MENDES (Olha-a por momentos ) - Que quereis de mim?
CATARINA - Sou eu,
querido pai. Senti-vos mal? Quereis que se chame o médico?
FERNÃO MENDES (num mal estar) - Sanguessugas… Sanguessugas… Sanguessugas!... Acreditais que
nas minhas veias há sangue para sugar? Sangue! Todo o meu sangue foi derramado
pelas sete partidas do mundo!
(Pausa)
CATARINA (duvidosa) - Sabeis quem eu sou? Sabeis? Será que é capaz de
dizer o meu nome?
FERNÃO MENDES - Sois Joana,
a minha filha….
CATARINA - Reparai bem,
meu pai.
FERNÃO MENDES - Sois
Joaninha, a minha filha mais nova. (Noutro tom) Onde pára
vossa irmã, a outra? Como é que ela se chama?
CATARINA - Catarina.
(Pausa)
FERNÃO MENDES - Tem o nome
da rainha viúva, a que desprezou o certificado dos meus serviços prestados nas
partes da Índia. Quando desembarquei estava ela na regência do reino. (Trocista) Fui recebido na corte, olhou para mim e para o meu
papel e chamou um conselheiro para que me desse provisões como lhe pedi. Será
que este conselheiro também morreu? Morreu de certeza sim. (Noutro tom)
Se eu não tivesse recebido o dote do casamento com a vossa mãe… Morre-se de
fome, de peste, na guerra… por ser judeu ou mouro… morre-se…(Desconcertante) Minha filha, acreditais que o vosso pai
ainda está vivo?
CATARINA - O homem que
escreveu a Peregrinação nunca mais
morrerá.
FERNÃO MENDES - Assim não
chego ao inferno pelos meus pecados.
CATARINA (pega numa toalha e limpa-lhe o suor do rosto) (Podemos trocar a toalha
pela água mineral em spray da Axelle) - Sossegai. Porque não vos deitais?
FERNÃO MENDES - Vossa irmã
conhece os meus papéis do princípio ao fim. Leu todas as folhas que tenho ali
reunidas. Sabe de memória passagens inteiras. Tem mesmo uma memória de
elefante! De todos cá de casa só ela, a minha Catarina, deu atenção e amor ao
meu livro! (Confidencial, chama-a para que se aproxime)
Ela já o salvou do fogo. Cá em casa queriam queimá-lo. Não sabíeis?
(Maria, Joana e Telmo Pais entram na sala, falando em voz
baixa)
CATARINA (dirige-se para Telmo) - Senhor Telmo Pais, que bom terdes
vindo, pois o meu pai está muito carecido da vossa presença. (Para Maria) Minha mãe, o pai fala sem tino… Falei-lhe e não me
reconheceu.
MARIA - Valha-me
Deus!
TELMO PAIS - Fernão
Mendes, meu bom e leal amigo, como vos sentis? (O escritor olha-o
sem palavras) Fernão Mendes… reconheceis-me?
FERNÃO MENDES - Sois...Telmo
Pais.
TELMO PAIS - Como vos
sentis?
FERNÃO MENDES - Teimo em
viver neste reino de loucos.
MARIA (surpreendida) - Ele reconheceu Telmo Pais. Graças a Deus!
CATARINA - Meu pai
esteve a troçar de mim! A chamar-me Joana!...
JOANA - E tu não
percebeste, minha sabichona?
(Catarina vai sentar-se sobre uma almofada
junto das pernas do pai, que lhe afaga os cabelos)
TELMO PAIS - Esse
coração, essas forças… sentis algumas melhoras desde o último dia que vos
visitei? Que vos diz o médico?
FERNÃO MENDES - Não consinto
mais sangrias, meu bom Telmo. O tempo das minhas batalhas passou. Quero guardar
com avareza o sangue que me resta.
TELMO PAIS - Eu percebo,
meu senhor.
FERNÃO MENDES (Muda de assunto) - Contai-me o que vistes na vila com a
visita de Filipe de Castela.
MARIA (desloca uma cadeira para que o visitante se acomode) - Sentai-vos, Telmo
Pais.
TELMO PAIS (senta-se) - Que dias agitados vivemos na vila de Almada,
Fernão Mendes!
FERNÃO MENDES - Ai sim?
TELMO PAIS - Aqui vieram
todos os nobres do reino, dos que ainda estão vivos depois daquela desgraça
vivida nos campos de Alcácer-Quibir. Triste procissão de interesses e de
ambições, os destes nobres e membros da Igreja que renegam o nome de Portugal.
FERNÃO MENDES - Que
desgraça…
TELMO PAIS (acena com a cabeça) - E se o meu fidalgo e amo e senhor Dom
João de Portugal, que a morte arrebatou ao lado do seu rei, presenciasse tão
degradante espectáculo...morria de amor pela pátria!
FERNÃO MENDES - Que notícias
há de D. António?
TELMO PAIS - Diz-se que
vive em França e que é hóspede de Henrique III. A repressão do conde de Santa
Cruz nos Açores foi terrível. Graças a Deus, o nosso rei conseguiu fugir mais
uma vez. Estranho destino deste príncipe: perde todas as batalhas… mas nunca
morre.
FERNÃO MENDES - Isso já eu
tinha reparado…
TELMO PAIS - Em
Alcácer-Quibir foi cativo; na ponte de Alcântara fugiu; nas muitas casas em que
se refugiou e, por fim na Ilha da Terceira, desapareceu como o vento. A
poderosa mão do Senhor parece protegê-la nessa maré de desgraças.
FERNÃO MENDES - Tendes
outras novas para me contar?
TELMO PAIS (Noutro tom) - A Duquesa de Bragança e o duque são nesta hora
defensores de Filipe de Castela. Grandes benefícios e privilégios têm recebido
do castelhano. Esses nobres e muitos outros… que sem o menor respeito esquecem
o chão sagrado da terra portuguesa. Cristóvão de Moura teve tarefa fácil no
negócio em que foi incumbido pelo real amo. Numa coisa estou de acordo com o
filho de Carlos V: o reino de Portugal entrou na sua posse por três razões:
herdou-o, comprou-o e conquistou-o. (enxuga as lágrimas do rosto)
Pobre Portugal dos nossos heróis e dos nossos santos, Fernão Mendes.
(Pausa)
FERNÃO MENDES - E novas dos
nossos amigos?
TELMO PAIS - Doloroso é
dizê-lo, mas quase todos foram ao beija-mão do rei castelhano. Dizem que
Francisco de Andrade não ficará só como provedor da Misericórdia. Outros e mais
lucrativos cargos o esperam.
MARIA - É também um
grande amigo da nossa família. Esperemos que não se esqueça de nós.
TELMO PAIS - Quase todas
as famílias estão divididas. Até chegamos ao pecado de invejar a boa estrela
dos nossos queridos mortos. Ao menos não tiveram de ver esta desonra. Feliz o
meu saudoso Luís Vaz de Camões, que está enterrado na igreja de Santa Ana.
Ainda o conheci moço e belo a frequentar a casa de D. Manuel de Portugal.
Escritor e português honrado! Estimavam-se muito. Tudo gente tão bonita que, só
de recordá-la, o nosso coração sangra de saudade.
MARIA - Viestes à
nossa casa para um longo e doloroso desabafo, senhor Telmo Pais.
TELMO PAIS - Senhora, e
quantas mais nesta vila pode um português encontrar?
MARIA - Dona
Madalena de Vilhena está melhor da sua doença? Esperamos visitá-la em breve.
TELMO PAIS - Estranho que
pareça, ela parece diferente nos últimos dias…
MARIA - Graças a
Deus! Vimo-la tão fora de si quando perdeu o D. João de Portugal. Passaram
quatro anos…
FERNÃO MENDES - Dissestes…
estranho que pareça?
TELMO PAIS - Nos tempos
que se seguiram à batalha de Alcácer-Quibir… todos duvidaram dos nossos
desaparecidos estarem perdidos para sempre… A dúvida sobre a morte de el-rei D.
Sebastião percorre ainda o reino. Quase toda a gente acredita mais na sua
existência do que na sua desgraça. Quanto a meu amo, D. João de Portugal, uma
vez chegada a folha dos cativos, não restam hoje dúvidas de que ele morreu.
FERNÃO MENDES - Sim, vosso
amo morreu na batalha. Mas qual a razão da vossa estranheza?
TELMO PAIS - Queria eu
dizer que Dona Madalena de Vilhena saiu do isolamento onde estava recolhida, é
estranho. Os dias passam e ela anda melhor. Eu próprio que tanto a aconselhei a
sair daquele funesto lugar estremeço de tal liberdade.
FERNÃO MENDES - A dor profunda altera o
nosso julgamento, Telmo Pais.
TELMO PAIS - Decerto… Mas
eu explico as minhas dúvidas. Entre os frequentadores da nossa casa temos como
mais regular o nobre cavaleiro, Manuel de Sousa Coutinho.
FERNÃO MENDES - Pertenceu à
ordem de Malta, estando cativo em Argel. É muito versado na língua latina. (Boceja)
TELMO PAIS - Dona
Madalena de Vilhena e o fidalgo passam horas de animado convívio. Leem poemas,
discutem temas religiosos… esquecem-se do mundo. (Receoso) Deus me castigue se a
minha desconfiança é falsa, mas…
MARIA (ansiosa) - Dizei. Por que razão não desabafais? Bem
conheceis a honra dos nossos ouvidos.
TELMO PAIS -Tudo se
encaminha para uma suspeita terrível!
MARIA - Qual?
CATARINA (num grito) - Que Dona Madalena de Vilhena gosta do senhor
Manuel de Sousa Coutinho?!
MARIA - Catarina!
Que insolência, minha filha!
JOANA - Minha irmã é
muito atrevida!
TELMO PAIS (cerra os olhos, tomba a cabeça sobre os punhos) - Estamos
todos fora da razão!
CATARINA (observa o pai, toca-lhe a mão) - Pai… Pai… Ouvistes o que
dissemos? (Com espanto) Adormeceu!
(Mutação)
ATO II
6° Quadro
(Noite do 8 de Julho de 1583. A mesa foi transformada em
catafalco. O corpo de Fernão Mendes Pinto envolto na roupa de São Francisco.
Quatro altos tocheiros ladeiam a câmara ardente. A luz das velas bruxuleia.
Cinco mulheres rezam vestidas de preto. São as duas servas e a família. Os
galos da quinta anunciam o novo dia)
SIMOA – A quantas
casas foi o meu Brás?
MARIA – O teu homem
foi de manhã anunciar à vila o falecimento do amo. Bater às portas a altas
horas da noite não é de aconselhar.
SIMOA – Quando a
Rita deixou cair o copo e veio cá para fora aos gritos … passava da meia-noite.
(Rita, a serva, rompe a chorar em altos gritos)
MARIA – Cale-se, mulher! Não chore dessa
maneira! Até me dá nervos!
(Pausa)
SIMOA – A senhora
podia tomar um caldo. Ontem esteve todo o santo dia em jejum. E as meninas?
MARIA – Não quero
nada.
(Pausa)
CATARINA – O meu
querido pai pediu para ser sepultado na igreja de Santa Maria do Castelo. A sua
vontade deve ser respeitada, minha mãe.
MARIA – A cerimónia
do enterro é feita pelo senhor provedor da Santa Casa da Misericórdia.
CATARINA – Eu falo com
o senhor Francisco de Andrade.
(Pausa)
SIMOA – Vamos ter
muitas saudades do nosso querido amo. Perdoava todas as ofensas… era mãos rotas
para os pobres. Por seu feitio tão generoso foi roubado nas Índias.
(Rita chora muito, de novo)
MARIA – Rita! Parai
com esses gritos! Pareceis sofrer como viúva ou como filha! És uma serva! (Para a filha, e fala agora noutro tom) Quando falaste com o
teu pai, que te disse ele sobre os papéis?
CATARINA – Senhora, não
se canse com esses trabalhos…
(Rita chora agora mais calma)
MARIA (observa-a) – Perra! (Para a filha) Não
respondes à pergunta que te fiz, Catarina?
CATARINA – Não se
preocupe, senhora, com os trabalhos que o meu pai deixou.
MARIA – Preocupo-me,
sim.
CATARINA – As suas
últimas vontades serão cumpridas.
MARIA – Minha filha,
tudo o que está escrito naquelas folhas cegam-vos aos perigos que corremos.
Desperta, Catarina! Não te destes conta que esses papéis estavam repletos de
heresias e que são um perigo mortal para a nossa família?
CATARINA – Que temores,
mãe! Sem faltar ao respeito que vos devo… começo a duvidar da saúde do vosso
tino!
MARIA – Sois muito
donzela, filha, e pouco conheceis a maldade humana. Até nisso sais ao teu pai,
tinha horas em que mais parecia uma criança. Brincava contigo como se ainda estivesse
na idade da inocência. Pobre Fernão Mendes, meu coração de menino tontinho! (chora)
CATARINA – Não levais
em conta os elogios do senhor Francisco de Andrade sobre o livro escrito pelo
pai? Não medis a amizade e o respeito que vos merecia Telmo Pais, senhor de
muitas leituras e íntimo de Luís Vaz de Camões? Naquela noite em que meu pai
narrava coisas da China, Japão e outras povoações, em casa de D. Madalena o seu
segundo marido, o senhor Manuel de Sousa Coutinho foi bem claro: “ Fernão
Mendes, tendes um tesouro dentro de vós, o qual não deve morrer convosco.
Escrevei tudo quanto passastes e vivestes nessas terras e mares para a maior
glória da nossa gente.”
MARIA – Filha,
quando começou a correr pela vila de Almada que o vosso pai estava a escrever
sobre os seus trabalhos na Índia… não encontrei mais sossego. Mudei de
confessor vezes sem conta, Catarina! Todos faziam perguntas que iam dar aos
papéis do vosso pai. Queriam saber o que escrevia sobre o padre Francisco
Xavier, que opinião tinha da Companhia de Jesus, que dizia dos selvagens
convertidos à nossa Fé. Foi uma das razões pela qual me obrigou a não ouvir a
missa do frei Francisco Foreiro. Mas nas outras igrejas da vila todos os
reverendos repetem as mesmas perguntas… (noutro tom) E
convosco, minha filha, quando vos ajoelhais para vos ouvirem em confissão? (A filha não responde) Nossa Senhora permita que todos os
meus temores sejam infundados!
(Longa pausa)
SIMOA – A senhora e
as meninas deviam repousar um pouco e tomar um caldo.
MARIA (ergue-se, cansada) - Vamos sim, vamos repousar um pouco.
(Simoa acena para que Rita saia também, saem todas menos
Catarina)
VOZ DE CATARINA – “E como
António de Faria de sua natureza era muito curioso, trabalhou por saber desta
gente que nações habitavam o sertão daquela terra e donde procedia a origem
daquele grande rio; e eles lhe disseram que a origem do rio procedia de um lago
que se chamava Pinator, que distava a leste daquele mar, duzentas e sessenta
léguas, no reino de Quitirvão o qual lago estava cercado de grandes serranias…”
CATARINA (aproxima-se do corpo e toca-lhe nas mãos) - Pai meu senhor,
há uma pergunta que nunca vos fiz. Perdoai-me a ousadia. António de Faria é
Fernão de Mendes Pinto, o valente corsário fostes vós, meu pai?
(começo da analepse)
(a cena ganha uma luz estranha, ouve-se um canto
gregoriano que se transforma lentamente numa melodia oriental, lentamente
Fernão Mendes Pinto, senta-se na mesa, volta-se para o público, abre o
vestuário, transformando-se em António de Faria. Sorri e acabam por aparecer
três ou quatro figurantes, formando um bando)
VOZ DE FERNÃO
MENDES – “E ao pé delas ao longo da água, havia trinta e oito povoações, das
quais treze eram grandes, e as que restavam muito pequenas, mas que só em uma
destas grandes, de nome Xincaléu, tinha uma tamanha mina de ouro. Pelo dito dos
moradores da terra, que se tirava cada dia dela um bar e meio de ouro, isto é
uma meia tonelada de ouro. Por ano, a valia da nossa moeda seria de vinte e
dois milhões de ouro, na qual quatro senhores tinham parte. Eram tão cobiçosos
que andavam permanentemente em guerra uns com os outros.”
(Nas paredes da sala projetam-se imagens da Peregrinação. Surgem figurantes. Uma noiva e sua comitiva entram
mimando um bailado. Pífaros, tambores e sinos. Dois velhos chins,
miseravelmente trajados, de longas barbas brancas e descalços, aparecem,
assustados)
1° VELHO – (apontando o bando de António de Faria) “Grande novidade
deve ser esta com que Deus nos visita, e queira Ele por sua bondade que não
seja esta noção barbada daqueles que por seu proveito e interesse espiam a
terra como mercadores e depois a salteiam como ladrões”
2° VELHO – “Aqui nesta
aldeia não há mais que redes e paraus de pescar, com que pobremente nos
sustentamos… “
(O bando de Fernão Mendes-António de Faria afasta os
velhos chins e dirige-se ao bando da noiva. Bailado da perseguição, acabando
esta por ser capturada. Um grito da jovem faz cessar a música)
ERMITÃO (avança do fundo) - “Qual a causa para que o vosso povo há
muito tempo atrás, quando tomaram Malaca pela cobiça, mataram os nossos sem
piedade? Vão negar que quem conquista não rouba? Quem força não mata? Quem
oprime não tiraniza? Pois estas coisas se dizem de vocês e se afirmam em lei de
verdade.”
(Um canto de igreja interrompe a fala do Ermitão, e
aparece o padre mestre Francisco Xavier que atravessa a cena espalhando
incenso. No lado oposto da noiva-prisioneira aparece o noivo)
NOIVA (solta-se e declama para o Noivo) - “Se a natureza desse
licença para ir ver a tua face, sem isso se tornar nódoa no meu viver, crê que
eu voaria para ir beijar os teus pés, mas já que eu vim da casa do meu pai para
te vir buscar aqui, vem-me tu buscar onde já não estou, se mal me vês na
escuridão desta noite...
(atravessa de novo a cena o padre-mestre Francisco
Xavier, que corta o enlevo dos noivos e a intervenção da noiva começando a
orar)
FRANCISCO
XAVIER – “Oremos irmãos meus em Cristo Nosso Senhor pelas vitórias dos nossos soldados sobre a
Terra e sobre o mar… “
(A luz foca no rosto de Catarina, ficando os restantes na
penumbra)
CATARINA – “Esta noiva,
segundo soube, era a filha do juiz de Colém, e era casada com um filho do
Chifu, capitão de Panduré”
(Toda a cena começa a ser sacudida por tempestade.
Relampagos, trovoes, vento, ruído de mar agitado. Cruzamento de focos luminosos
no primeiro plano oculta o fundo do palco, aparecendo agora Fernão Mendes,
António de Faria e os companheiros, rotos e famintos, ao mesmo tempo que mimam
a descrição)
VOZ DE FERNÃO
MENDES - “ … Como a noite era escura, estava frio, o mar agitado, o vento forte,
as águas cruzadas e a força da tempestade muito forte nada nos restava senão a
Misericórdia de Nosso Senhor, por quem chamávamos aos gritos e a chorar, mas
por causa dos nossos pecados não éramos merecedores de Ele nos fazer esta
mercê…”
(A tempestade acalma, os náufragos estão por terra
esfomeados e exaustos. Fazem como se estivessem a arrancar plantas da terra e a
comê-las. Um raio de Sol aparece, ouvem-se as gaivotas e um peixe cai nas mãos
dos quatro náufragos. Milagre! Os quatro náufragos reúnem-se num cacho de
súplica)
FERNÃO MENDES
PINTO – “Senhor Jesus Cristo, eterno Filho de Deus, peço-te pelas dores da tua
sagrada paixão que não nos censures a desconfiança em que a miséria da nossa
fraqueza nos tem posto… Deus meu… te peço…”
(Abre-se a parede do fundo e entram máscaras
carnavelscas, rebentando fitas com estrelinhas luminosas. Os quimonos vermelhos
e negros contrastam com um longo dragão de papel verde-dourado, que acaba
também por aparecer. Todas estas figuras coleiam para o primeiro plano,
ocultando Fernão Mendes-António de Faria e os companheiros de aventuras. Mas
eles voltam pouco depois, de novo na mó-de-cima, fardados e armados, soltando
gritos guerreiros)
FERNÃO MENDES – “ Eia!
Senhores e irmãos, a eles! Com o nome de Cristo! Antes que as armas deles os
ajudem!”
(Voltados para a plateia, movem as espadas como se
cometessem uma abordagem, ouve-se o tinir das espadas e tiros, mas para o azar
deles são obrigados a recuar)
FERNÃO MENDES – “Ah!
Cristãos e senhores meus, se estes lutam pelo Diabo, esforcemo-nos nós em
Cristo, que não há de desamparar-nos.”
(Os quatro avançam de novo sobre o adversário invisível.
Do outro lado aparecem os dois velhos agora mascarados de velhos chineses:
quimonos coloridos e chapéus cónicos)
1° CHINÊS (ao ouvido do outro) - “Pergunta a essa gente se têm rei e
como se chama a sua terra, e a que distância ela estará da do Chim”
2° CHINÊS (cheio de experiência) - Conquistar esta terra tão grande dá
claramente a entender que entre eles há
muita cobiça e pouca justiça. Homens que por negócio voam por cima do oceano
inteiro para obterem o que Deus não lhes deu, ou a pobreza neles é tanta que
tudo lhes faz esquecer a pátria, ou a vaidade e a cobiça é tanta que negam a
Deus e aos seus pais”
(Euforia de cor e de movimentos. As máscaras e o dragão
de papel dominam de novo a cena. Os quatros corsários aparecem agora ostentando
colares de oiro é de pedrarias. Cantam e gesticulam ébrios de felicidade. Pouco
depois as vozes e a música são absorvidas pelo choro de um Menino de doze anos,
que lhes aparece na retaguarda).
FERNÃO MENDES
PINTO (para e volta-se, e os companheiros fazem o mesmo)
- “Porque choras menino? De onde vem essa tristeza e o que a trouxe? A quem
pertence? Responde-me, não ouves?”
MENINO - “Era do meu
pai que não tinha sorte nenhuma e que teve o azar que tu lhe roubasses em menos
de uma hora tudo o que ele ganhou em mais de trinta anos...”
FERNÃO MENDES
PINTO (consola-o) - “Não chores, criança. Eu prometo
dar-te abrigo e cuidar de ti como meu filho.”
MENINO (liberta-se dos afagos) - “Não cuides de mim, embora me
vejas menino, não sou tão parvo. Roubaste-me o pai e agora achas que te vou
deixar cuidares de mim?...”
(permanecem em cena todos os figurantes, movem-se lentamente,
ganhando um aspecto plástico. A luz foca em Catarina)
(Fim da analepse)
CATARINA (narra o que aconteceu depois) - Os papéis que o meu pai
escreveu, “dando conta de muitas estranhas coisas que viu e ouviu no reino da
China, Sião e em muitos outros reinos do Oriente” foram entregues ao senhor
Francisco de Andrade, que ocupava o lugar de provedor da Santa Casa da Misericórdia
de Almada. O pai tinha uma grande confiança neste senhor que além de escritor e
poeta obteve dos reis espanhóis grandes cargos como Cronista-mor e Guarda-mor,
ele também aconselhou Fernão Mendes Pinto a dividir o seu trabalho por
capítulos. Sugestão aceite pelo meu pai.
(Pausa)
CATARINA – Minha mãe
estava certa sobre aqueles papéis não serem infundados. Alguns da Igreja
mostravam-se inquietos com a sua existência. Mas entre estas opiniões, corriam
boatos que neles só havia mentiras e falsidades. Daí a pergunta: Fernão,
mentes? Minto.
(Pausa)
CATARINA – Os anos
passaram e decidimos dar os papéis, retocados pelo senhor Francisco de Andrade,
a uma instituição de caridade – Casa Pia dos Penitentes de Lisboa. Mesmo ainda
nesse lugar o manuscrito continuou a ser consultado por estudiosos, vários
padres.... A primeira tradução da Peregrinação
foi feita para espanhol pelo padre Maldonado. E ´só em 1614, o livro foi
impresso e lançado no mercado, ou seja trinta e um anos após a morte do meu
pai! No dia 15 de janeiro de 1583, três meses antes do meu pai falecer, o
meirinho da vila entregou-nos um documento que reza assim: (Lê o texto
enrolado num papel que desdobra) “El-rei Felipe, nosso senhor, faz
mercê a Fernão Mendes Pinto de dois molhos de trigo cada ano, em dias de sua
vida, atendendo aos serviços nas partes da Índia”. (Sorri, e fala com
o público) Sabiam
que com três molhos de trigo anuais se coze três pães por dia ? (Ri) Portugal no seu melhor, nunca soubemos recompensar os
portugueses de valor! Quando se recompensa o português ou já morreu ou então a
recompensa é tão miserável que mais valia ficarem quietos!
(Cai o pano)
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