PEÇA COMPLETA



FERNÃO MENDES PINTO:
o andarilho das sete partidas




Adaptação da obra de Romeu Correia, «O andarilho das sete partidas»
pela turma de 10º ano da Secção Portuguesa do Liceu Internacional (2017-18)
ELENCO

Bonzo Maior
Cyrille Cohen
Catarina (filha de FMP)
Estelle Alexandre
Victoria Gomes
1º Chim
Lena Gomes
2º Chim
Albertine Demaël
Ermitão
Inés Chevrier da Costa
Felícia, a parteira
Adriana Carvalho
Malaurine Afonso
Fernão Mendes Pinto
Antonin André
Charles Pastoret
Jason da Costa
Jean Demaël
Miguel Ramalhosa
Samuel Vieira
Fernão Mendes Pinto Jovem
Cyrille Cohen
Frade Mendicante
Alexandre Marques
Francisco de Andrade
Alexandre Marques
Francisco Xavier
Jean Demaël
Joana (filha de FMP)
Larissa Lopes
Maria Correia de Brito (esposa de FMP)
Axelle Gonçalves
Clarisse Bernardino
Hellena Neto
Julie Carvalho
Larissa Lopes
Maëlle Glo
Mathilde Nunes
Mem Taborda
Fábio Cruz
Menino
Cyrille Cohen
Noiva
Maëlle Glo
Pêro Carriço (servo)
Giuliano Riccardi
Rita (serva)
Maria Rodrigues
Simoa (serva)
Albertine Demaël
Inès Chevrier da Costa
Lena Gomes
Louna Lopes
Maria Rodrigues
Tanoeiro
Fábio da Silva
Telmo Pais
Enzo Martins
1º Velho
Fábio Cruz
2º Velho
Fábio da Silva
ATO 1
1° Quadro


(Pátio de casa rústica, no sítio do Pragal, arredores de Almada. Manhã primaveril de 1562. Todo o espaço está ocupado por pipas, selhas e instrumentos agrícolas. Roupas e trapos em desalinho, restos de mobília e uma tela rota. Ervas e flores brotam do chão pouco pisado. No início, chegam-nos ruídos de animais na quinta)

SIMOA (serva de 38 anos, gorda, entra com dois cestos cheios de livros grossos, encadernados em pele. Vem derreada, coberta de suores. Berra pelo Caseiro) - Pêro Carriço! Carriço!... Onde estás, maldito? (Põe os cestos no chão, retira o lenço e abana-se) Carriço!... Pêro Carriço!...

PÊRO CARRIÇO (Servo de 65 anos, magro, envelhecido, transportado em balde de madeira, entra Abespinhado) - Que gritos! Parece que há fogo no quintal!...

SIMOA - Onde estavas, seu danado? Não me ouvias a chamar? Venho aos berros pelo caminho...!

PÊRO CARRIÇO (pousando o balde) - Agarrado às tetas do animal! A trabalhar! Porquê? Não estão a toda a hora, na vila, a berrar pelo leite e pelo trigo... e por qualquer problema na quinta?

SIMOA - E daí? Que têm as tuas obrigações a ver com a minha garganta seca de chamar por ti?

PÊRO CARRIÇO - Estava agarrado às tetas da vaca, já disse! (Aponta para os cestos) Que tens nesses cestos, Simoa?

SIMOA (retira grossos livros, com certo orgulho) - Papéis! Papéis mui ricos e forrados de belas peles! Coisas de grande qualidade!

PÊRO CARRIÇO (tenta mexer nos livros) - Pele de boi a enrolar papéis? Que desperdício!

SIMOA (Joga-lhe uma palmada) - Cuidado! Tira as patas da mercadoria!

PÊRO CARRIÇO (ofendido) - Que textura tão rica para os acessórios da minha égua! Que estragação!

SIMOA (desprezível) - Atreves-te a maldizer dos gostos do nosso amo? Velho piolhoso! A invejar as peles para os acessórios da égua! (Resmunga) Olha a língua, Pêro Carriço e guarda respeito ao nosso novo amo, Senhor Fernão Mendes Pinto!

PÊRO CARRIÇO - Pelinha de animal para enrolar papéis! Sinceramente!

SIMOA - Eu é que podia resmungar sobre estas mudanças que me estragam a vida! Da vila para o Pragal e do Pragal para Almada! Este casamento da menina tem-me arrancado lágrimas e suores!

PÊRO CARRIÇO (explode) - Casamento! Casamento! Porque não ficam os noivos na casa da vila? Porque teimam em voltar para a quinta do Pragal?

SIMOA - Esta casa é deles e tem de ficar limpa para receber os novos senhores.

PÊRO CARRIÇO - E tudo a correr, tudo aos gritos? Maldito casamento! Agora já não têm medo das almas penadas da casa do Pragal?

SIMOA - Esta casa e esta quinta pertencem aos seus donos! A senhora dona Brites morreu aqui no Pragal... e por isso o senhor e a menina mudaram-se para a vila. Agora com este casamento tudo volta ao mesmo, e tu tens que ir dormir para o sótão da adega.

PÊRO CARRIÇO - A menina e o fidalgo não têm medo da casa?

SIMOA - O senhor Fernão Mendes Pinto é um valente cavaleiro que nada teme. Um homem dos antigos, Pêro Carriço! (Trocista) Acabou a tua vida tranquila!...

PÊRO CARRIÇO - Tranquila? Chamas isto tranquilo? Quem cava de sol a sol? Quem semeia e colhe todas as frutices deste chão? Quem ficou aqui depois da morte da senhora dona Brites? E de olhos bem abertos, ouviste, Simoa? De olhos bem abertos... e sem medo da morta!...

SIMOA (persignando-se) - Credo!

PÊRO CARRIÇO (divertido) - Só de falar na graça da morta... (Grita a rir) Senhora dona Brites Correia de Brito! Aparecei, senhora dona Brites!...

SIMOA - Cala essa boca, filho do Demónio! Respeita quem te dá o pão! Guarda em oração a memória dessa santa senhora!

PÊRO CARRIÇO (pega no balde e retoma a galhofa) - Fugistes desta casa como se morasse cá o Diabo! Fugiram todos!... A senhora morreu ali no quarto, mal saiu o enterro para a igreja da vila, fugiram... ninguém mais quis dormir no Pragal!

SIMOA (corajosa) - Mas vão regressar, Carriço ingrato! Os novos senhores vão voltar, e tu vais limpar aquelas casas e portas e janelas! Até domingo tudo aqui deve ficar impecável! Há que manter o prestígio das mulheres da limpeza destinadas a ficar na história da humanidade, verdadeiro ex-libris de Portugal!

PÊRO CARRIÇO - Raios me partam se entendi com quem casou a Mariazinha! Só dei fé que casou na igreja da vila com um fidalgo de Lisboa que veio das Índias.

SIMOA - Nada conheces das ricas famílias que vivem em Almada!

PÊRO CARRIÇO - Eu não conheço os fidalgos da vila?

SIMOA - És um bicho metido na toca. Passam semanas que não vais a Almada. É mentira? Pêro Carriço, foste alguma vez a Lisboa? A Lisboa, pelo mar, com aquelas ondinhas e os turistas chineses…

PÊRO CARRIÇO (amedrontado) - A Lisboa, não. Não quero ir a Lisboa!... Não me chamo Madona! (ouve-se excerto final do vídeo “Madona come to Almada” https://www.youtube.com/watch?v=re1GODJsHBI) A capital vejo-a muito bem de longe!

SIMOA (na mó de cima) - Medinho do rio! Se fosses a Lisboa chegavas ao Terreiro do Paço todo cagado!

PÊRO CARRIÇO (muda de assunto) - A casa do Pragal não pertence a esse fidalgo!

SIMOA - Pertence sim, meu querido!

PÊRO CARRIÇO - Pertence, como?

SIMOA - O senhor Fernão Mendes Pinto ao casar com a Mariazinha... ela entregou-lhe esta casa e a quinta como dote seu. Percebeste agora? Ele é o novo senhor a quem deves obediência. Mete na cabeça a graça do teu amigo: Senhor Fernão Mendes Pinto.

PÊRO CARRIÇO - Pinto? Julguei que fosse galo! Maldito! Porque não foi o fidalgo para Lisboa ou para a terra que o viu parir?

SIMOA - O senhor Fernão Mendes Pinto é um valente cavaleiro de muitas letras, que entende qualquer papel que lê. Escreve, escreve que se desunha. Andou por todos o mares do mundo, venceu batalhas, serviu reis de bandas de lá do sol posto… e foi amigo e companheiro de santinhos que se adoram nos altares. (Solene) E se digo isto tudo, Pêro Carriço, é para que saibas a que senhor deveis obediência e respeito.

PÊRO CARRIÇO (desalentado com lágrimas na garganta) - Há que anos vivo aqui com os meus animais! Vou sair da minha casa? Maldito casamento, Simoa!

SIMOA (compadecida) - Não acredites qu’o casamento me agrada. A menina está à minha guarda desde a morte de sua mãe. Ao pai, o senhor Diogo Correia, embarcado nas naus da Índia, muito pouco tempo lhe sobra para a vida da família. Lá embarcou para as ilhas mal os noivos saíram da igreja. (Orgulhosa) Há anos que sirvo esta família. Cheguei a esta casa, era uma criança de doze anos. Lembras-te, Pêro Carriço? Hoje sou uma mulher de trinta anos…

PÊRO CARRIÇO (por entre dentes) - Trinta? Eu dar-lhe-ia pelo menos 50!…

SIMOA - A tua tralha tem de sair desta casa. O senhor Fernão Mendes Pinto já me disse que podes dormir no sótão da adega. No domingo, depois da missa, os noivos vão regressar ao Pragal.

PÊRO CARRIÇO - Abandonam a casa da vila com uma vista tão maravilhosa?

SIMOA - Tens sete dias para pintar estas paredes e pô-las a cheirar a alecrim, Pêro Carriço.

PÊRO CARRIÇO - E quem vai dar ao braço a varrer e a limpar?

SIMOA - Amanhã vem a Rita e mais duas mulheres da vila.

(Ouve-se fora de cena uma sineta tocada por um Frade mendicante, que acaba por aparecer miseravelmente vestido, empunhando um mealheiro com o retábulo do santo)

FRADE (numa lenga-lenga) - Mandai vossos filhos e filhas e escravas, à santa doutrina na igreja de Santa Maria do Castelo, por amor de Deus!

SIMOA (corre a beijar o retábulo) - Salvai-o Deus, bom padre! (Procura uma moeda que introduz no mealheiro) Seja pelas minhas alminhas.

PÊRO CARRIÇO (aproxima-se do Frade, contrariado, e beija o retábulo) -  Salve-o Deus… (e disfarça, sem dar moeda. Pega no balde do leite, e faz menção de sair.)

FRADE (encara as moedas no mealheiro e diz) - Esmolas para a nossa santa irmandade… (chocalha de novo).

PÊRO CARRIÇO (para, geme) - Quereis dinheiro, padre? Pois se os senhores a quem sirvo não me dão moedas há vários anos…

FRADE - Não tens moeda nenhuma?

PÊRO CARRIÇO - Que saudades do som do dinheiro! Irmão, fazei cantar de novo as vossas moedinhas.

(o Frade chocalha o medalheiro: uma, duas vezes…)

PÊRO CARRIÇO (encantado com a mão atrás da orelha) - O melro não canta melhor!

SIMOA - Irmão, eu dei por mim e por ele… Lançai-nos a vossa bênção.

(O Frade lança a bênção, retira-se, agitado a sineta)

SIMOA (abespinhada) - A atirar para os ouvidos do irmãozinho que os senhores não pagam! Linguareiro de má raça!

PÊRO CARRIÇO - Há tanto tempo que não seguro uma moeda na mão!

SIMOA - E a tua barriga não se enche com o pão e as frutas? E quantas galinhas desapareceram sem saírem daqui? (Pêro tenta responder-lhe) E o porco que os lobos comeram que te vi comendo no outro dia?

PÊRO CARRIÇO (fulo) - Mentirosa! Desbocada! Intriguista!

SIMOA - Quem te dá trabalho e agasalho desde que para cá vieste? Não foram os pais da Mariazinha que tiveram piedade de ti, perro tinhoso?

PÊRO CARRIÇO - Mas quem cava este chão e planta sementes e o rega de suor? És tu com as tuas artes de bruxa manhosa? Quem ceifa estes campos e colhe o trigo e os bate na eira? Quem carrega os animais para o moleiro e do moleiro para a vila? Quem? Quem é o ser que nunca descansa?

(Pouco antes começa a ouvir-se a vaca leiteira a mugir e a égua a relinchar)

PÊRO CARRIÇO - Como sempre estou a cuidar dos animais até já sabem chamar por mim!

FELÍCIA (parteira de 45 anos, metediça, voz de falsete, entra com um saco) - Deus esteja nesta casa!

SIMOA (que não deu pela chegada dela, assusta-se) - Credo! Mãe Santíssima!

FELÍCIA (riso) - Meti-lhe medo, mulher?

SIMOA - Não a esperava, tia Felícia! Entrou tão de repente, não a esperava… Até parecia…

FELÍCIA - A vitória portuguesa do euro 2016?

SIMOA - Quem lhe disse coisa tão estranha?!

FELÍCIA - Não vinha à sua procura, comadre. Vou ao moleiro com este centeio para meu governo. Mas ao ver a vossa casa não pude resistir à tentação de passar por aqui.

SIMOA - Grandes mudanças vão ser feitas aqui!

FELÍCIA - Mudanças?

SIMOA - Não esteja com essa carinha inocente!…

FELÍCIA - Simoa (Beija dois dedos em cruz) Pela minha salvação! Há meses que não estou em Almada! Estive na Aldeia Galega a ajudar a minha cunhada. Cheguei esta manhã no barco do Janota. Mas que aconteceu, não sei de nada?

SIMOA (solene) - A minha menina casou-se.

FELÍCIA (num espanto) - A dona Mariazinha? Não!

SIMOA - Sim! Sim!

FELÍCIA (pousa o saco) - Casou? Quem foi o sortudo?

SIMOA - O senhor Fernão Mendes Pinto.

FELÍCIA - Por Deus que nunca ouvi falar dele!

PÊRO CARRIÇO (Enervado) - É um Pinto que veio das Índias (sai com o balde de leite)

SIMOA - Podia estar podre de rico se não fosse um coração aberto às dores do mundo. Mas a roda do azar e da fortuna parece acompanhá-lo para todo o lado.

FELÍCIA - Ah comadre, tantas conversas para acasalar a virtuosa menina... tantos segredos trocámos… (Curiosa) Simoa, minha boa amiga: como se conheceram os noivos?

SIMOA - O pai da minha menina conheceu o senhor Fernão Mendes Pinto no regresso para o reino. Viveram ambos os tormentos da viagem, entenderam-se como dois irmãos. Dá gosto ouvi-lo falar sobre as terras por onde andou e os povos selvagens que conheceu. Venceu guerras, descobriu ilhas e até serviu reis das bandas de lá do mundo…

FELÍCIA - Estou de boca aberta, Simoa! De boca aberta! Trata-se então de alguém que soube arranjar boas cruzadas, não é verdade?

SIMOA - Para lhe ser franca nem tudo eu conheço da vida do meu amo. Tudo quanto sei dele foi ouvido nas conversas lá em casa. O senhor Diogo, pai da Mariazinha, coloca-o à altura das estrelas. Fernão Mendes Pinto quando fala parece um sábio prior. As palavras saem-lhe tão bonitas, encantam-nos tanto. Uma vez que o escutava, fiquei tão presa às suas palavras que me esqueci de servir a ceia. Ele contava coisas da China e dos chineses que não sabem comer com as mãos, como a gente. Pegam nuns pauzinhos e atiram com o arroz para a boca…

FELÍCIA - Estás gozando comigo, comadre?

SIMOA - Deus me livre de destruir a nossa amizade! Nessas terras para lá do sol posto a vida dos selvagens é mesmo às avessas da nossa. São povos sem religião entregues às mil ciladas do Diabo.

FELÍCIA - Comer arroz com dois pauzinhos! Nunca ouvi tal de tanta gente que andou pelas Índias!

SIMOA  - O senhor Fernão Mendes Pinto navegou e viveu para lá das Índias. O que ele viu e conheceu nunca se escutou nas falas dos marinheiros das naus.

FELÍCIA (com a mão sobre o peito) - A comadre não se vai zangar, se eu lhe disser uma coisa?

SIMOA - Desabafe, comadre, desabafe. Diga tudo! Bem sabe que não é fácil fazer-me medo.

FELÍCIA - Eu sou mais velha uns invernos. Já sofri fome, terremotos e até pestes de levar tudo raso. Já fiz muitos casamentos e ajudei a parir muitas crianças. Já vi desgostos de todos os tamanhos…

SIMOA - Está a pensar que o esposo da minha menina é um mentiroso?

FELÍCIA - Não fica zangada comigo, pois não?

SIMOA - O senhor Fernão Mendes chegou ao reino com poucos cruzados no baú de bordo… porque foi amigo e companheiro de santinhos que se adoram nos altares… (Segreda-lhe) Os quais lhe ficaram com grande porção de cabedais!...

FELÍCIA (sofre uma tontura) - Não!

SIMOA - Sim! Sim!

FELÍCIA - Alcance-me um banco para me sentar.

SIMOA (chega-lhe um banco) - Quer uma gota de água? Está a tremer?

FELÍCIA (senta-se, limpa suores, murmura) - Perdi a vista... Mas repita lá o que disse: os santos desses lugares roubaram dinheiros ao vosso amo?

SIMOA (esforçando-se por esclarecer) - Os santinhos não são desses lugares! Vão de cá para as Índias! (Perde convicção). Comadre, eu talvez não me tivesse explicado bem. Os nossos santos padres vão lá pregar as leis de Deus Nosso Senhor e construir igrejas. Para tais obras são precisos muitos cruzados entendeste? As casas de Deus não aparecem feitas por milagre, são os pedreiros e os carpinteiros que as põem de pé. E toda essa gente ganha dinheiro… não vive do ar!…

FELÍCIA - Vosso amo foi roubado pelos santinhos que vão de cá do reino? (Benze-se) Continuo a não entender uma heresia tamanha!

SIMOA (a irritar-se) - A senhora está doida? Quem falou em roubar?

FELÍCIA - Foi o que eu ouvi.

SIMOA -Eu disse: os santinhos ficaram com grande parte da sua fortuna.

FELÍCIA - Ficar e não entregar não é o mesmo que…? (Mímica expressiva)

SIMOA - Não! Por Deus! No caso do meu amo, não! Porque ele pertenceu durante uns tempos à mesma Companhia de Jesus!

FELÍCIA (maior pasmo; num grito) - É padre!… É padre!!! Que Deus ilumine esta terra! (Recua, a benzer-se) Esse Fernão Mendes Pinto é padre e atreve-se a tomar mulher diante do altar?!

SIMOA - A comadre está a baralhar tudo! Oh mulher de Deus! Esteja atenta, e limpe os ouvidos.

FELÍCIA - Pobre menina! Desgraçada! Concubina dum padre! Concubina dum mentiroso!…

SIMOA - Fechai essa boca, mulher! Travai essa língua venenosa! (Felícia foge). Ela não compreendeu o que eu disse. Embrulhou tudo… e falou em heresia!… (Uma dúvida terrível) Ou fui eu que não arrumei bem as palavras sobre o senhor Fernão Mendes Pinto?

(Mutação)



ATO I
2º Quadro

(Pobre casa de camponeses. Grande sala. À esquerda, ficam o forno e a lareira. Na parede estão penduradas panelas e numa estante está exposta loiça de barro. Uma tulha para amassar a farinha. No fundo, porta de entrada; na direita, porta que dá para o quarto. Larga mesa de pinho e alguns bancos. A um canto, duas cadeiras negras. Nos móveis, candeias. Grande crucifixo na parede frontal. Fim de tarde de Verão. Pôr de sol. Estão em cena Simoa e Rita, as duas servas de 18 e 15 anos; e a dona, Maria Correia de Brito, de 18 anos. Maria cose junto da mesa e as servas amassam o pão perto da chaminé. )

SIMOA (para a Rita) Mexe-te, Rita! Por este andar só amanhã metemos o pão no forno! (Vaidosa) Na tua idade, nenhuma mulher me passava adiante na lida da casa! Trabalhos rijos havia no tempo da dona Brites!

RITA (com medo) - Nossa Senhora! Valei-me, Nossa Senhora!

SIMOA - O que te deu, rapariga?

RITA (gemendo) - É que… tenho medo da senhora Brites…!!

MARIA - Parai com o nome da minha mãe! Nesta casa ela só deve ser recordada nas nossas orações!

SIMOA - Perdoai-me, menina. Prometo ser mais cautelosa… (Benzendo-se) Que a alma da vossa santa mãe repouse no eterno descanso.

MARIA - Parai de mencioná-la!

(Silêncio. Ouvem-se cães ladrar.)

MARIA - O Pêro Carriço não prendeu os cães? Quem nos visita não pode ser mordido. Basta que os soltemos de noite contra os lobos e ladrões.

SIMOA - Os lobos malvados! No último inverno comeram-nos muitos animais.

MARIA - Os lobos precisam de boa batida. O senhor Fernão Mendes Pinto em breve vai procurá-los na companhia de outros paroquianos deste lugar do Pragal.

SIMOA - Menina, autorizais a minha curiosidade sobre a vida do senhor?

MARIA (saudosa) - Se quereis saber onde ele está… Agora está em Lisboa, na praça do Pelourinho Velho, a escrever. Ele é um notário muito procurado por aqueles que precisam de boas letras: requerimentos, orações fúnebres, cartas de amor, sermões para serem ditos nas igrejas…

SIMOA - E toda essa sabedoria lhe vem daquela rica cabecinha?

MARIA - O meu esposo pega na pena, molha na tinta e desenha no papel esta arte que é a escrita.

SIMOA - Que belo dom! E raros são os que neste mundo sabem ler e escrever. (Intencional) A minha menina também não é muito boa a escrever…

MARIA (tosse seca) - O meu pai e os meus irmãos, o Afonso e o Pedro, sabiam escrever muito bem. Típico dos homens da família. A nós, mulheres, cabe sermos virtuosas, boas esposas e mães.

SIMOA - O senhor Pedro e o senhor Afonso… Tão saudosos moços ceifados pela peste…

(Pausa)

MARIA - Agora é a minha vez de vos perguntar uma coisa, querida ama…

SIMOA - O quê, menina?

MARIA (hábil) - Esta manhã… quando o senhor Fernão Mendes Pinto abalou para o porto de Cacilhas, tu quiseste saber qualquer coisa. Porque escolheste a língua venenosa?

SIMOA (chocada) - Oh, menina, não deveis falar desse modo na presença de estranhos!

MARIA - A Rita não é uma estranha. Está ao nosso serviço e esperamos que fique para sempre. (Um tempo) Que quereis saber sobre o meu esposo?

SIMOA - Nada, nada…

MARIA - Fala. Não importa a presença da Rita.

SIMOA (cheia de hesitações) - Um homem que foi padre … pode casar-se?

MARIA - Estais louca, mulher?! A Igreja não permite tamanha heresia!

SIMOA (perplexa, volta-se para companheira do celeiro, e descarrega os nervos) - Mexe essas mãos, minha lesma! O senhor está de volta e ainda não temos o pão no forno!

MARIA - Onde ouvistes tal sacrilégio, Simoa?

SIMOA - Perdoai-me! Dias há em que uma pobre mulher não atina com os seus próprios pensamentos.

MARIA (interrompe a costura e acerca-se da serva) - Simoa. (Não resposta) Simoa?

SIMOA (interrompe a faina e encara-a, nervosa) - Menina…?

MARIA - Qual a graça desse padre de que falais?

SIMOA - A graça?

MARIA (decidida) - Sim a graça, o nome? Como é que ele se chama? (Pausa) Eu satisfaço a tua curiosidade… O senhor Fernão Mendes Pinto trabalhou para a companhia de Jesus, mas nunca foi ordenado Padre… Entregou grande parte da sua riqueza aos Jesuítas, que tanto o respeitam ainda. A primeira igreja construída no Japão foi paga pelo meu marido… Chorais agora? Parai essas lágrimas! O meu marido não deve tardar… e eu não quero que ele tenha mais problemas, já sofreu muito nas Índias!

SIMOA - Eu prometo ser melhor serva diante do vosso esposo. Foi tudo tão rápido e estranho: as visitas do senhor à casa da vila, as suas histórias das terras e dos selvagens da banda de lá do sol, os martírios sofridos por aquela alminha cristã… Que esposo o vosso, menina, que até os padres e os santos lhe pedem dinheiro!

MARIA - Os velhos aconselham que sejamos sabedores e justos. Dar à língua sem parar e repetir tudo o que se ouve acaba por ser calúnia… maledicência… grandes pecados mortais!

SIMOA - Eu juro! Eu juro pelas Cinco Chagas de Deus Nosso Senhor expulsar da minha doida cabeça todas essas ciladas do Diabo! (Cruza os dedos e beija-os várias vezes em sinal da jura que acaba de pronunciar)

RITA (num grito) - Tia Simoa! Tia Simoa!

SIMOA - O que queres?

RITA (espantada) - O pão está a crescer…

(Simoa retira a mão cheia de pedaços de massa de farinha que coloca sobre a mesa. Divide em quatro grandes “bolos”. Depois, Rita coloca os pães sobre a pá que mete na boca do forno. Pêro Carriço aparece com um braçado de lenha)

PÊRO CARRIÇO (dirige-se para a dona de casa, e anuncia) - Minha senhora, está lá fora um homem estranho que gostaria de ser recebido por vosso esposo.

MARIA - O senhor não está. Ainda não veio de Lisboa.

PÊRO CARRIÇO - Foi o que lhe disse. Mas o homem é teimoso. Não quer ir embora sem ser recebido por gente desta casa.

MARIA - Disseste um homem estranho?

PÊRO CARRIÇO - Vem ruim de roupas e de pés… mas não perdeu os ares de fidalgo!

MARIA - Fidalgo?

PÊRO CARRIÇO (engasga-se) - Parece…

MARIA - E cavaleiro?

PÊRO CARRIÇO - Se teve cavalo creio que já o comeu… tão magro e esfomeado… Mando-o entrar?

MARIA (hesitação) - Simoa, limpai essas mãos e alcançai-me uma cadeira dessas. (Para o campónio) Que entre, que entre. Mas ficai no pátio perto dos cães. Se eu gritar, soltai logo os animais.

(Pêro Carriço retira-se. Simoa limpa as mãos e os braços e dirige-se para os cadeirões. Pêro Carriço introduz o visitante que é alto, magríssimo, ridículo, de 50 anos, mas com ares de fidalguia.)

MEM TABORDA (numa exagerada vénia, anuncia-se) - Mem Taborda, servidor de el-rei nas Índias.

(A dona da casa encara-o, dececionada, e faz menção à serva para que recue com a cadeira. Esta volta para o canto e repõe o móvel no chão, com estrondo. O visitante pula, assustado. Simoa regressa ao pão.)

MARIA - Procurais o senhor meu esposo? Não está. Que desejais?

MEM TABORDA - Senhora, o vosso servo já me anunciou a ausência do vosso esposo. Perdoai a teimosia de ficar… Mas sinto-me vazio de forças, senhora…

MARIA (inquieta) - Mas que desejais desta casa?

MEM TABORDA - Falar com o vosso esposo.

MARIA - Fernão Mendes embarcou de manhã cedo para Lisboa.

MEM TABORDA - Permitis que fique debaixo dos vossos tetos, esperando?

MARIA - Senhor…

MEM TABORDA (numa vénia) - Mem Taborda, servidor de el-rei.

MARIA - Senhor Mem Taborda, somos nesta casa e nesta hora três mulheres sem proteção…

MEM TABORDA - Duvidais da minha honra, senhora? Ofendeis-me com tal suspeita! (Retira a espada e tenta entregá-la) Aqui tendes o meu ferro como prova de que venho em bem!

MARIA - Chegai para lá a vossa espada!

MEM TABORDA (recolhe a espada) - Quinze anos de trabalhos e sofrimentos nas partes da Índia a lutar contra toda a casta de infiéis. O meu sangue regou terras e mares cheios de mouros. Naufraguei e vi morrer centenas, milhares, de companheiros… (soluça) Não me mandais sentar? Estou tão cansado…

MARIA - Simoa, alcançai um banco a esse senhor.

(A serva pega num banco de pinho que põe junto da mesa. O visitante senta-se, sem forças. Momento sem palavras.)

MARIA - Rita, pedi a Pêro Carriço que vos dê a fruta caída para dar aos porcos e às galinhas.

(A rapariga encara o visitante e sai a correr)

MEM TABORDA (suspira) - Abençoado o fogo que coze o bendito pão!

MARIA - Tendes família?

MEM TABORDA - A peste levou-me mulher e filha. Tive um irmão em Alenquer, mas já faleceu.

SIMOA (benzendo-se) - Que descansem na paz do senhor!

MEM TABORDA - Amen.

MARIA - Amen.

SIMOA - E nessas terras por onde andastes não enriquecestes?

MEM TABORDA (sarcástico) - Enriquecer? A sorte e as riquezas sempre tiveram asas para me fugir! As recompensas iam todas para os outros! Patifes! Ladrões! (Bate com o punho na mesa, fazendo estremecer as duas mulheres. Depois, mais calmo) Perdoai o meu comportamento.

(As duas mulheres entreolham-se, junto do forno. Um tempo. O visitante abre a boca, sequioso.)

MEM TABORDA - Minha boa senhora, não quereis matar-me a sede com um copo de vinho? Nas minhas pobres tripas só entraram hoje água e pão duro…

MARIA (a Simoa) - Dai um pouco de vinho. (Para o visitante) Quereis pão com linguiça?

MEM TABORDA - Senhora, perguntais a um cego se quer ver?

(A serva executa as ordens da senhora: verte vinho num copo de barro, corta um naco de pão e junta-lhe linguiça. Mem Taborda devora o pão com voracidade; engasga-se e tosse. Momento comovente.)

MARIA (comovida) - Dissestes que andastes pela Índia dez anos?

MEM TABORDA - Quinze… quinze anos ao serviço de Deus e d'el-rei! Mas para quê tanto sangue, mas para quê tantos sofrimentos?!

MARIA - Onde conhecestes Fernão Mendes Pinto?

MEM TABORDA - Estivemos em Goa pela mesma altura. Vosso esposo vinha riquíssimo dos mares da China. Dava gosto ver caminhar tão poderoso embaixador e comerciante! (Lambe a ponta dos dedos) Esta linguiça foi feita pelos anjos! Será pedir muito… só mais um naquinho?

MARIA (concede) - Simoa, serve.

(A serva corta mais pão e linguiça, que entrega a Mem Taborda)

SIMOA - Deito mais vinho?

MEM TABORDA (ergue o copo) - É sangue de Deus Nosso Senhor! (Simoa serve)

MARIA - Quando é que vistes Fernão Mendes em Goa?

MEM TABORDA - Há uns nove ou dez anos, talvez em 1554…

MARIA - Meu esposo só regressou para o reino quatro anos depois. Teve ainda que desempenhar missões na China e no Japão.

MEM TABORDA - Mais negócios na China? Que país! Nesse reino compra-se por três e vende-se por trinta! Excelente para um homem ficar podre de rico!

MARIA - Só que Fernão Mendes Pinto regressou pobre ao reino...

MEM TABORDA (muito espantado) - Vosso esposo perdeu as riquezas?! Não acredito!

(Cães ladram.)

SIMOA - Quem será?

PÊRO CARRIÇO (entra na sala a correr) - O senhor chegou à quinta!

(Mem Taborda levanta-se e sacode as migalhas. Fernão Mendes Pinto entra.)

FERNÃO MENDES (retira o casaco do ombro) - Deus seja louvado nesta casa! (Maria dirige-se ao marido e beija-o. Fernão Mendes vê o visitante.) Quem é?

MARIA (baixo) - Teimou em esperar por vós. Diz que vos conhece.

MEM TABORDA - Tenho a honra de estar na presença do senhor embaixador Fernão Mendes Pinto? (Vénia) Mem Taborda, servidor de Deus e de el-rei nas partes da Índia!

FERNÃO MENDES PINTO - Sim, sou eu. Mas nesta casa já não podeis encontrar o embaixador, nem o comerciante, nem o guerreiro. Nos dias que me restam quero paz e quietação. (Retira do alforge papel, dois livros, o frasco da tinta e a pena de pato, colocando tudo sobre a prateleira) Só gostava de ter notícias da Santa Casa da Misericórdia, ou da albergaria de São Lázaro ou do almoxarife, mas nada! (virando-se para Mem Taborda) Mas digai lá… que quereis de mim?

MEM TABORDA - Meu senhor, fui um servidor como vós da Companhia de Jesus, para a qual gastei os meus jovens anos de vida… Desembarquei no reino há dois anos, depois de ter combatido e regado as terras mouras de meu sangue generoso… E agora, ando à procura de hospitalidade. Há já cinco dias que tenho andado a implorar socorro aos fidalgos e às casas ricas… Alguns dão-me pão e uma gotinha de água e outros - Deus seja louvado!- permitem que eu durma na estrebaria com as bestas. Tinha a esperança de que vós, senhor Fernão Mendes, que conheci rico em Goa, me pudesses...

FERNÃO MENDES PINTO (aparte) - Bons tempos…

MEM TABORDA - Perdoai-me, senhor, por vir tão tarde em casa morada, mas a vossa casa é a minha única salvação. Nunca comi tão bem! Bondosa senhora tendes como esposa, Fernão Mendes! Que Deus Nosso Senhor vos dê os filhos que mereceis!

FERNÃO MENDES PINTO - Contrariamente ao que pensais, o meu atestado de bons serviços não facilitou em nada a minha vida. Escrever é o meu ganha-pão. Não vos posso valer, senhor…

MEM TABORDA - Mem Taborda!

FERNÃO MENDES PINTO - Senhor Mem Taborda. A visita acaba aqui.

MEM TABORDA: E que foi feito do vosso ouro e dos vossos escravos? Oh, tinha tanta fé na vossa ajuda!

FERNÃO MENDES PINTO (a Pêro Carriço) - Põe fruta no saco deste homem.

MEM TABORDA (põe-se de joelhos) - Por favor! Tendes uma casa, uma mulher bonita e moça e pão a cozer no forno!

FERNÃO MENDES PINTO - Boa viagem!

MEM TABORDA (a gritar) - Tantos anos ao serviço de Deus e este é o meu pagamento! Tenho um papel de bons serviços, e acabo os meus dias a pedir esmola... Estive no segundo cerco de Diu! Nunca fiz pirataria como alguns que voltaram ricos!

FERNÃO MENDES PINTO - Trouxemos todos queixas e cicatrizes da Índia! A Santa casa da vila tem vários lugares para forasteiros. Aguardai com resignação a vossa vez. Ide em paz!

(Maria fecha a porta e vai abraçar o seu marido.)

MARIA - Quem é este homem?

(Luz baixa. Escuro e fim.)



ATO I
3.° QUADRO

(Noite de verão e de luar. O forno e a lareira estão apagados. Uma candeia de azeite arde sobre a mesa, em cujo tampo se vê papel, tinteiro de metal e alguns livros. Cena deserta por momentos. As cigarras cantam na quinta)

MARIA (entra com um castiçal com uma vela. Estranha a ausência do marido) - Fernão... Fernão Mendes! Onde estás meu esposo? (ergue a luz e observa a sala; mas esbarra com o escritor que, entretanto, regressou) Santo Nome de Jesus!

FERNÃO MENDES (que fora lá dentro vestir um hábito franciscano, estranha a reação da mulher) - Maria! Maria!

MARIA (recua, assustada) - Nunca vos vi assim tão trajado!

FERNÃO MENDES (abana o hábito, sorrindo) - O Calor minha esposa, o calor minha esposa! Porquê tanto espanto?

MARIA - Onde arranjastes essa roupa?

FERNÃO MENDES - Estava baú entre as minhas recordações.

MARIA - Bem sabeis que não é meu costume mexer nas vossas coisas.

FERNÃO MENDES - (beija-a com ternura) Qualquer dia teremos uma conversa sobre a nossa vida passada. Sim, minha esposa? Quando vos beijo sinto o bater apressado do vosso coração…

MARIA - (inquieta) Fernão... os nossos empregados estão lá fora a escolher fruta e podem aparecer... Tenho medo que nos vejam abraçados!

(A sombra de ambos desenha-se enorme numa parede da sala)

FERNÃO MENDES - É pecado o marido beijar a esposa?

MARIA - Pecado não, meu senhor. Sabeis que sou vossa, inteiramente vossa. Mas podemos ir para dentro do quarto e fechar a porta... aqui não me sinto à vontade.

FERNÃO MENDES (afasta-se dela, preocupado) - Esta noite tenho muito que escrever. Um sermão e um elogio fúnebre. Amanhã, em Lisboa, tenho que entregar os trabalhos.

MARIA - Esta noite está tão formosa (toca-lhe o joelho)

FERNÃO MENDES - Esta noite passo-a a escrever. O sermão é pra ser dito por um bispo a quem devo provas de respeito.

MARIA (contrariada) - Esse tal bispo não sabe escrever?

FERNÃO MENDES - Sua eminência mandou-me pedir uma escrita formosa. Uma escrita formosa…(senta-se e prepara a pena para escrever)

MARIA - Conviveis com gente rica e poderosa, Fernão Mendes, e ninguém vos recompensa pelos vossos trabalhos e serviços. Todo mundo vos procura, todos vos pedem palavras e escritas... e nada  recebeis nas vossas sábias mãos. Tantas promessas, tantas falas galantes vossas... e um homem como vós na praça pública a fazer cópias e escritas apenas por 40 réis.

FERNÃO MENDES - Não desespero minha esposa . Na Santa Casa da Misericórdia talvez consiga um trabalho.

MARIA - O senhor provedor Dom João de Abranches é rara a semana em que não vos manda chamar. Antes de nos casarmos, por saberem da nossa amizade com o Santo Padre Francisco Xavier, vinham a minha casa procurar o vosso paradeiro (Noutro tom). Quando voltar o Inverno continuará a atravessar o rio pra fazer esses trabalhos em Lisboa? O frio enche-vos o corpo de dor, mal podeis caminhar entre o Pragal e Almada.

FERNÃO MENDES - Não me recordeis esses tempos de frio quando este calor abençoado me regala os ossos! (abana o hábito)

MARIA (divaga pela sala) - Está uma linda noite de verão! O luar enche de luz a nossa quinta. Oh, como gostaria de estar à beira da rocha a aproveitar a brisa do vento! Ver as naus e as grandes luzes de Lisboa banhada de luar!


FERNÃO MENDES (molha o aparo na tinta) - Ao trabalho! (repete com ironia o que escreve) Irmãos meus em Cristo nosso senhor…


FERNÃO MENDES - Maria! Eu não tenho a vossa idade! Você é uma moça de dezoito anos e eu um homem de cinquenta e três anos cheios de trabalhos, lutas e sofrimentos. Os meus tempos das Índias gastaram muito de mim, do meu rigor, da minha saúde. A morte, por mim passou bem perto vezes sem conto.


MARIA - Todos esses tormentos acabaram para vós, querido, estamos casados e somos felizes. Recebestes esta casa e a quinta como dote. Esquecei os tormentos do passado.

FERNÃO MENDES - Não é só no corpo que tenho cicatrizes… No meu sangue na minha alma há marcas dolorosas.

MARIA - Mas estamos no Verão! No Verão que faz rejuvenescer e que vos anima! Afaste as más recordações!

FERNÃO MENDES - As minhas recordações, as boas e as más. Hão de morrer comigo. Oh, como eu gostaria ainda de escrever a minha história vivida nessas terras longínquas… A minha peregrinação…

UMA VOZ (com vários ecos, repercute-se) - A minha peregrinação… peregrinação… PEREGRINAÇÃO!


MARIA (inquieta) - Que tendes, querido?

FERNÃO MENDES - Estou bem. Estou bem.

MARIA - Vosso corpo lembra-me um cristo retalhado de tormentos pelas mãos desses selvagens! Bonita a vossa vida, Fernão Mendes, fostes dez vezes preso e quinze vezes vendido?

FERNÃO MENDES (hesita) - Treze vezes preso e dezasseis vendido. (numa dúvida)  Ou será que foram… catorze preso e dezassete vendido?...

MARIA - Meu esposo exposto no mercado a ouvir o pregão infame de quem dá mais. (afaga-o) Este pobre corpo coitado sem piedade. (revoltada) Foi a paga desses selvagens a tantos sacrifícios dos portugueses para lhes ensinarem as leis de Deus nosso senhor? Ingratos povos visitantes! Quando me lembro da tortura do chicote… eles batem com correias?

FERNÃO MENDES - Varas de bambu. E cortam os polegares, e as orelhas e o nariz…


MARIA - Que horror! (sobe as mãos às orelhas e ao nariz, tateia) Que sustos padecestes! Graças a Deus regressastes inteiro!

FERNÃO MENDES - Perdi um osso nas minhas lutas.

MARIA - Um osso? Qual?

FERNÃO MENDES (risonho) - Adivinhai, minha esposa…

(Maria apalpa-lhe o peito, os braços, provocando-lhe cócegas)

FERNÃO MENDES - Estai quieta... Estai quieta... (noutro tom) olhai que eu vos mando ser açoitada por Pêro Carriço!...

MARIA - O Pêro Carriço… o Pêro Carriço… esperam-nos grandes trabalhos na vinha. Que ajuda é a vossa, meu senhor?

FERNÃO MENDES (divertido) - Quereis fazer de mim um agricultor? Sei pisar uvas.

MARIA (senta-se no colo dele) - Em setembro ainda há lume no céu e o vosso corpo não se magoa na apanha da uva. Concordais comigo, senhor embaixador?

FERNÃO MENDES - Parecíeis agora aquele Mem Taborda que nos apareceu há dias. (Repete) Embaixador e comerciante…

MARIA - E à saída, chamou-vos pirata. Pirata! Ofendeu-nos, aquele perro!

FERNÃO MENDES - É um destroço humano, um desgraçado… dos muitos à deriva pelo reino. Não podemos dar crédito à mentira e ao maldizer. (Afaga-a, beija-a) A cabecinha da minha esposa é um fermento… está sempre a fantasiar…

MARIA (arrebatada) - Não escrevas agora o sermão! Vamos para o quarto! Vamos abrir as portas do paraíso…

(Simoa, Rita e o Pêro Carriço entram, despreocupados. Ao esbarrar com o frade abraçado à senhora, gritam de espanto)

SIMOA (põe as mãos e cai de joelhos) - Jesus e Maria santíssima!

(Rita imita-a, trémula)

PÊRO CARRIÇO (tapa os olhos e grita) - Eu não vi nada! Eu não vi nada! Nada! Nada!

FERNÃO MENDES (levanta-se e impõe autoridade) - Não conheceis o vosso amo? Não sabeis quem escreve todas as noites nesta mesa?


(As duas servas erguem-se desorientadas)

PÊRO CARRIÇO (retira as mãos dos olhos e repete) - Pela minha saúdinha que não vi nada!

FERNÃO MENDES - Velho pateta! Velha enganadora! Não conheceis o vosso amo?

SIMOA - Oh meu senhor, mil perdões vos peço! Reconheço-vos muito bem, meu senhor! Mas como estáveis metido nessa roupeta… acreditei noutro pecador!

FERNÃO MENDES - Quereis dizer, velha parva, que eu sou pecador? Que pecados são os meus, não mo dizeis?

SIMOA (chora em alta gritaria, ofendida) - Eu não sou velha! Só tenho quarenta anos! E estou inteirinha, graças a Deus!

MARIA - Parece uma casa de loucos! O senhor tem calor e vestiu outra roupa… tanta doideira! Sossegai e dizei ao que vêm!

(Os servos entreolham-se, serenam)

PÊRO CARRIÇO (tosse) - A fruta está apartada… Fruta para venda no mercado e fruta para dar aos animais…

SIMOA - Meu senhor … só viemos pela fruta…

FERNÃO MENDES (irritado) - Os trabalhos da quinta não são de minha conta! A vós essas tarefas! (alheia-se) Eu preciso de paz e quietação.

MARIA (para o pessoal) - Acompanhai-me (e saem, falando em voz baixa)

FERNÃO MENDES (Senta-se e relê o que escreveu) - Irmãos meus em Cristo nosso Senhor…”Assim como um bom pai folga quando vê que lhe convidam os filhos, assim folga este Senhor, pai verdadeiro de todos, quando com zelo de caridade… quando com zelo de caridade… nos comunicamos uns com  os outros.” (Abandona a pena, contrariado) Estou sem ideias, tenho a cabeça vazia… o coração tão distante…

VOZ DE MARIA - “Estamos casados e somos felizes. Recebeste esta casa e a quinta como meu dote. Esquecei os tormentos do passado.”

VOZ DE FERNÃO MENDES - “Não é só no meu corpo que tenho cicatrizes… cicatrizes… cicatrizes… No meu sangue, na minha alma há marcas dolorosas… da minha peregrinação… Peregrinação… marcas dolorosas… dolorosas…

(Ruído de vozes, gritos, lâminas que se chocam. O vento e o mar enraivecido também se escutam, assim como a presença de raios e trovões. Pouco depois, tudo calmo, ao mesmo tempo que as paredes da sala recebem a projeção de uma paisagem oriental. Um círculo de luz estende-se ao tampo de uma arca, que se abre ao som de um arpejo. E aparece o Menino, chinês de 12 anos, que ri e folheia papéis)

MENINO - Português! Não te esqueças de mim, português ! Se não me fizeres aparecer na tua história… Rogo-te uma praga, maldito!

FERNÃO MENDES - Há que anos nos encontrámos, Menino! Eras uma criança muito sábia…

MENINO - Tantas lágrimas vertemos pela tua maldade!

VOZ DE FERNÃO MENDES - “Depois de estarmos todos recolhidos, e seguros de que os chineses não nos podiam fazer mal, pusemo-nos a comer muito descansadamente o jantar, que um velho tinha preparado, o qual consistia em dois tachos de arroz com pato e toucinho picado que nos soube então muito bem, dado o apetite que todos tínhamos.”

MENINO - Mas não foi para nos tirares o arroz que tu e os outros voaram sobre as águas do mar! (Agita papéis ) Foi para nos soprar o fogo da guerra e da peste, roubando tudo ao alcance das vossas criminosas mãos! Tens aqui nos teus papéis muitas histórias de sangue e de lágrimas… Papéis que vieram contigo na tua viagem de regresso…

FERNÃO MENDES - Menino sábio que me atormentas… que não me sais do pensamento… ( Dolorosamente) Ao certo não sei bem já se tu existes ou se és fruto da minha imaginação!...

MENINO - Português, eu sou o teu castigo, o teu arrependimento! Vais contar a tua história… e a minha, não é verdade?

FERNÃO MENDES - Uma criança não fala como tu. As tuas palavras certeiras e cruéis só podem nascer da minha escrita…

MENINO - Eu estou vivo na tua cabeça…

FERNÃO MENDES - De dia para dia, atormentam a minha imaginação… A tua fala martela a minha cabeça…

MENINO - “Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi rezar a Deus, depois de fartos, com as mãos levantadas e com os beiços azeitados, como homens a quem parece que basta mostrar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendo que o senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a agitar com os beiços, quando nos proíbe tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves, como depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo da sua divina justiça.”

FERNÃO MENDES - ( abaixa o rosto sobre as mãos, atormentado, e repete) Esta noite, não… Não me atormenteis..

(As paredes da sala perdem a paisagem. Uma sombra oculta a figura do Menino. A arca fecha-se )

FERNÃO MENDES (Relê o início do sermão) “Irmãos meus em Cristo Nosso Senhor: Assim com um bom pai folga quando vê que lhe convidam os filhos, assim folga este Senhor, pai verdadeiro de todos, quando com zelo de caridade nos comunicamos uns com os outros.”

( Mutação)



ATO I
4º Quadro

(O Inverno mudou a vida na quinta e na residência. O vento sopra lá fora. A lareira está acesa Maria confecciona roupas para bebé, pois está grávida de oitos meses.)

MARIA (com o olhar no fogo, chama pelas servas) - Simoa! (Depois) Rita! Onde param estas mulheres?

(Entra Felicia, a parteira. Sacode o negro capote e observa a dona da casa)

MARIA - Quando preciso desta gente, sempre desaparecem! (Volta-se e esbarra com a parteira) Ah! Tia Felícia!

FELÍCIA (com voz de falsete, trémula) - Ai que frio, minha filha!

MARIA - Chegai-vos para a lareira. Não fiqueis na entrada.

( Felícia aceita o convite e aproxima-se da lareira)

MARIA - Que é feito de vós, tia Felícia? Por onde tendes andado? (Noutro tom) Procurais a Simoa?

FELÍCIA - Qual Simoa? Estava com muitas saudades de vós! É a primeira vez que vos vejo depois do casamento.

MARIA (Ergue-se para lhe puxar um banco) - Não fiqueis de pé a cansar as pernas.

(Felícia ao sentar-se erra a cadeira e cai. Risos da Maria, da Simoa e da Rita)

MARIA - Ó Simoa, dá-me três “petit suisse”!

SIMOA - Para quê?

MARIA - Porque a Felícia quer se “p’titsuicidar”, não viste como já conseguiu cair?????

(Todo o mundo pisca o olho ao professor Pedrosa)

FELÍCIA (levanta-se e senta-se) - Ai! (esfrega o rabo) Agora dói-me o traseiro! (Muda de assunto) Que barriguinha tão grande! Para quando está previsto?

MARIA - Espero no fim do mês.

FELÍCIA - Ainda não tive o prazer de conhecer o vosso marido.

MARIA - Não perdes nada! (Ri-se) ‘Tou a brincar! Já o viste nas ruas de Almada de certeza. É muito conhecido na vila. (Noutro tom) Os padres da Companhia de Jesus vieram buscá-lo esta manhã.

FELÍCIA (num sobressalto) - Vieram buscá-lo? Mas é coisa grave ?

MARIA - Claro que não! Crês que ele trabalha para Daech ou quê? Eles estão sempre a chamá-lo porque é muito conhecedor das terras da Índia e da China para onde os jesuítas desejam ir evangelizar.

FELÍCIA - E eles o escutam e acreditam em tudo o que sai da sua boca ?

MARIA - Muita gente do reino escuta e pede notícias ao meu marido. Até escreve discursos para o bispo!

FELÍCIA - Ah! Que sabedoria!

MARIA - Mas olha, não é dessa sabedoria que podemos viver. Ninguém lhe paga pelos serviços que prestou no Oriente! Desde que morreu D. João III, passando pela regência de D. Catarina e pelo governo, hoje, do senhor cardeal Dom Henrique… Todos os negócios têm vindo de mal a pior.

FELÍCIA - Será mau-olhado dos espanhóis?

MARIA - Não sabemos o que é … mais que isto por cá vai mal, vai. Todos querem embarcar para enriquecer. Mas a maior parte das vezes trazem o baú cheio de miséria e doenças, quando não deixam lá a própria pele. (limpa uma lágrima) Restava-me o meu bom pai… e até ele me deixou! Pobre pai… (limpa outra lágrima).

FELÍCIA (ergue-se, respeitosa) - Morreu o senhor Diogo Correia?

MARIA - Regressava da sua última viagem para ficar para sempre a viver connosco. Faleceu. Foi lançado ao mar na costa da Guiné.

FELÍCIA - E eu sem conhecer tamanha fatalidade. (Ajoelha e reza)

SIMOA (entra na companhia de Rita, que traz um panelão, Simoa preocupada e nervosa) - Menina! Menina! O Carriço! O Carriço matou o galo!

MARIA (com autoridade) - Menina? Era quando andava ao teu colo. Hoje sou uma senhora.

SIMOA - Ouvi, menina. (Emenda) Perdão! Ouvi minha senhora. (Descobre a parteira) Viva, tia Felícia!

FELÍCIA (ergue-se) - Deus te livre destes frios Simoa!

SIMOA - Ai o frio, meu Deus! Minha senhora, o bicho está morto. Quereis depená-lo agora ou fica para mais tarde?

MARIA - Tens água a escaldar na lareira.

(Simoa retira o caldeirão a ferver que transporta para a mesa. Repõe o caldeirão no gancho da lareira e volta para depenar o bicho com a ajuda de Rita)

SIMOA (mostra o galo) - Este galo safado morreu de barriga cheia, andou em cima de todas as galinhas. Morreu consolado!

FELÍCIA - Simoa, olha que a inveja é um pecado mortal. (Risos de Simoa, Maria e Rita).

SIMOA (mudando de assunto) - Desde o ano passado que não a víamos, Simoa. E foi com esta invernia que se meteu até ao Pragal?

FELÍCIA - Uma mulher como eu não pode esquecer-se das pessoas amigas…

SIMOA (em voz baixa) - Préstimos e faro…

FELÍCIA - Espero que a dona Mariazinha não tenha ainda nenhuma mulher apalavrada para os trabalhos que a esperam. A senhora dona Brites, sua mãe, só me queria a mim como parteira.

RITA (ao ouvir o nome de dona Brites, pára e treme) - Nossa Senhora!

SIMOA - Que foi? (dá-lhe uma pequena cotovelada) Para de ser tonta!

FELÍCIA (mostra as suas mãos no ar) - Foram estas mãos … (baixando as suas mãos e olhando para elas) que trouxeram o corpo da dona Mariazinha para a luz da vida. (Convidando-se) No fim do mês posso vir comer na vossa casa? (fazendo-lhe os olhos de gato) Posso, meu querido anjo?

MARIA - O meu esposo é que destina agora tudo. Nesta casa nada se resolve sem o ouvir primeiro.

PÊRO CARRIÇO (entra apressado) - O senhor Fernão Mendes Pinto chegou de Vale de Real! Vou limpar a égua…

(Fernão Mendes entra e sacode o seu capote. Felícia e Maria erguem-se.)

FERNÃO MENDES PINTO - Esta égua não aguenta um trote! Está velha e teimosa, não obedece a nada…

PÊRO CARRIÇO (ofendido) - Velha, velha… Há que anos não é montada!

FERNÃO MENDES PINTO - Carriço! Pêro Carriço!

PÊRO CARRIÇO (a sair, para) - Pêro Carriço é comigo… Vossa senhoria chamou?

FERNÃO MENDES PINTO - Sim, chamei-te. Ficas avisado de que não gosto de ouvir reparos às minhas opiniões, ouviste? A égua pertence a esta casa, é claro?

PÊRO CARRIÇO - Mas quem a conhece melhor do que eu? Quem está sempre aqui a cuidar e tratar dela?

FERNÃO MENDES PINTO - Mas ninguém falou em tirar-te o animal, és tu o encarregado dela.

PÊRO CARRIÇO (teimosa, aos gritos) - Mas aquela égua não gosta de ser cavalgada! Para montar temos os burros!

MARIA (gritando) - Carriço! Pêro Carriço! Quem dá ordens nesta casa é o meu esposo! E há de montar a égua quando bem o entender!

PÊRO CARRIÇO (ergue os braços como se desistisse) - Pronto eu cerro a boca e fico mudo! (a sair) A meter a minha égua em cavalarias com dois burros na cocheira!

FERNÃO MENDES PINTO (aproxima-se da sua mulher, beija-a e afaga-lhe o ventre) - Como vai o nosso guerreiro?

MARIA - Mexe-se muito.

FERNÃO MENDES PINTO (estende os braços para o lume e recita) - Fogo, pai da vida, aquece os fracos ossos deste velho que tão carecido está da tua bênção!

FELÍCIA (por entre dentes, olhando de soslaio) - É velho mas ainda as sabe engravidar...

MARIA - Fernão Mendes, esta é a tia Felícia! Ela assistiu ao meu nascimento e ao dos meus irmãos.

FELÍCIA - Deus vos recompense, meu senhor! Que linda família!

FERNÃO MENDES PINTO - Obrigado! (Noutro tom) E veio já para o parto?

FELÍCIA - Eu, meu senhor? Eu não sabia que a vossa esposa tinha comido um KFC (risos de Felícia e Fernão Mendes). Estou a rir obviamente. Eu não sabia que ela estava grávida. (Ergue a mão e abençoa o casal)

MARIA (dirigindo-se ao esposo) - Que vos queriam em Vale Rosal?

FERNÃO MENDES PINTO - Pediram-me para que falasse aos novos que vão embarcar para a Índia. (Muda de assunto) O almoxarife continua sem dar notícias?

MARIA - Não vos procurou ninguém.

FERNÃO MENDES PINTO ( inquieto) - Enquanto esse poderoso tempo não melhorar não posso ir a Lisboa aceitar encomendas, é perigoso com esse mar revoltado.

SIMOA (benze-se) - Mãe Santíssima!

MARIA (acercando-se dele, carinhosa) - Mas não estejais preocupado com o vosso trabalho, as colheitas deste ano foram boas, e graças a Deus (olhando para o céu e suspirando) vendemos todo o vinho. Não vamos ter faltas este inverno!

FERNÃO MENDES PINTO (com um ar desesperado, triste) - Não sofro pela comida, bem sabeis. Durante os meus vinte e um anos de peregrinação habituei-me a correr riscos e a não estar plantado num lugar.

(Uma grande trovoada rebenta. As quatro mulheres em pânico.)


CORO DE MULHERES  - “Santa Bárbara bendita
      Que no céu estais escrita
                          Com vosso livro na mão
     Pedi a Nosso Senhor
    Que nos livre do trovão”

FERNÃO MENDES PINTO (com calma) - Tenhamos calma, minhas senhoras!

CORO DE MULHERES -” Espalhai-o para bem longe
                                             Onde não haja pão nem vinho
                                             Nem flor de rosmaninho”

FERNÃO MENDES PINTO (sorridente) - Uma trovoada destas é para assustar os meninos! Ah! Ah!

FELÍCIA - Que heresia!

FERNÃO MENDES PINTO - Trovoadas grossas, tempestades… Vivi nas terras e continentes por onde andei. Na China e no Japão, os ventos são tão medonhos e grossos que arrancam árvores, derrubam casas, alevantando do chão homens, mulheres e meninos, que parecem aves a voar.

(As mulheres vão retomando as posições anteriores. Mas Maria comove-se com a dissertação do marido)

FERNÃO MENDES PINTO - Que lágrimas são essas, minha esposa?

MARIA - Não choro da trovoada nem de medo dela. Da maneira como contais lembro-me dos dias felizes em que meu pai vos escutava encantado.

FERNÃO MENDES PINTO (com amargura) - Quando regressei ao reino todas as portas se me fecharam, mas graças ao apoio do vosso pai consegui ir para a frente. A ele devo uma esposa e um lar...

MARIA - E um filho... se Deus quiser.

FERNÃO MENDES PINTO (divaga) - Navegámos sete meses de Goa a Lisboa. Atravessámos mil tormentas. Uma noite tivemos a embarcação cheia de peixes voadores, são peixes do tamanho dos nossos morcegos. Teimosos e loucos e sempre em quantidade maior, contagiando a tripulação de risos. (Muda de tom) Conhecemos tempestades em que as tábuas da nau subiam e desciam no vaivém das ondas. Derrotámos uma tentativa de abordagem de piratas franceses. Não esquecerei jamais Diogo Correia de Brito, piloto da nau "Sacramento".

PÊRO CARRIÇO (aparece de mau humor e anuncia) - Chegou à quinta um homem que pede para ser recebido.

FERNÃO MENDES PINTO - Não disse porque vem?

PÊRO CARRIÇO - Veio de carroça.

FERNÃO MENDES PINTO - Que entre o homem.

(Pêro Carriço sai. Simoa limpa as mãos ao avental e, fazendo sinal a Rita, dirige-se também para as cadeiras de alto espaldar, que ambas transportam para perto da lareira)

MARIA - Limpai a mesa, levai tudo (para a parteira) Tia Felícia, retirai-vos, por favor.

FERNÃO MENDES PINTO - Este Pêro Carriço não conhece ninguém!
Acreditas que nem a Beyoncé ele conhecia! (Risos) Será o almoxarife? Será alguém com boas notícias para mim da Santa Casa da Misericórdia?

(As duas servas e a parteira obedecem, Carriço introduz o visistante)

TELMO PAIS (escudeiro de 43 anos de idade, cerimonioso) - Senhor Fernão Mendes Pinto e minha senhora...

FERNÃO MENDES PINTO (feliz) - Senhor Telmo Pais, que felicidade receber-vos! (Abraça-o) A que devo vossa visita? (Indica a mulher) Minha esposa, dona Maria Correia de Brito.

TELMO PAIS (numa vénia) - Os meus respeitos. Tive a honra de conhecer vosso pai... a sua morte a todos enlutou.

MARIA (vénia) - Deus vos abençoe.

FERNÃO MENDES PINTO - Vem aquecer-te perto do lume. (Ambos se sentaram nas cadeiras, Maria no banco de costura) Dizei, Telmo Pais.

TELMO PAIS - D. João de Portugal, encarregou-me de vos trazer um convite. O seu casamento com a senhora dona Madalena de Vilhena tem lugar nos primeiros dias de março. E ele quer vossa presença como convidado.

FERNÃO MENDES PINTO - Grande honra me concede vosso amo. Belo e valente cavaleiro. Nalgumas tarde, na Santa Casa da Misericórdia, tivemos conversas muito produtivas.

TELMO PAIS - Os vossos relatos do Oriente são apreciados por muita gente.

FERNÃO MENDES PINTO - Muito obrigado!

TELMO PAIS (entrega uma carta a Fernão Mendes) - O convite de D. João. (Fernão abre e lê) É o senhor Francisco de Sousa Tavares, o pai da noiva.

FERNÃO MENDES PINTO - Não tive ainda o prazer de encontrar o senhor Francisco de Sousa Tavares.

TELMO PAIS - Sua excelência tem uma grande estima por vós. Escutei-o várias vezes elogiar-vos.

FERNÃO MENDES PINTO - Ah! Quem tal diria!

TELMO PAIS - Já se escutam louvores de vós, Fernão Mendes Pinto, há muito tempo no reino! O senhor Francisco Tavares falou-nos em duas maravilhosas cartas recebidas por el-rei D. João III, uma delas escrita pelo missionário Francisco Xavier. Desconheceis tais cartas? Todo o reino comenta a vossa amizade e trabalhos com São Francisco Xavier.

FERNÃO MENDES PINTO (solene) - Amei esse homem e venero-o desde que morreu. Vivemos juntos momentos que não esqueço! (emocionado, como se recordasse o passado)

TELMO PAIS - Quando falais dele o vosso olhar ganha uma luz que não é vossa.

MARIA - Podeis contar-nos mais sobre essas cartas?

TELMO PAIS - Tenho ainda em memória algumas linhas. Na de São Francisco, lembro-me: (ouve-se uma voz off, a luz foca apenas Fernão) “Fernão Mendes serviu Vossa Alteza nestas partes e emprestou-me 300 cruzados no Japão para construir uma casa em Yamaguchi”.

MARIA - Sim, lembro-me desse empréstimo.

TELMO PAIS - Voltando às cartas, na outra, de Aires Brandão, dizia algo como: (ouve-se uma voz off, a luz volta a focar apenas Fernão) “Começou a distribuir o que tinha ganhado com tanto trabalho, dando muitas esmolas aos pobres. A muitos escravos agasalhou mandando-lhes que conhecessem a Deus daí por diante. Três deles se lhe deitaram aos pés chorando que queriam ir com ele para o Japão.” (Noutro tom) Confirmais o que escreveu?

FERNÃO MENDES PINTO - Foi verdade!

(Comovem-se todos)

MARIA - (limpa uma lágrima) - Infelizmente!

(Mutação)



ATO I

5.° QUADRO


(Passaram cinco anos, estamos em 1568. Bom tempo. Fim de tarde. Fernão Mendes e a mulher ceiam. Ambos estão sentados nas melhores cadeiras. A carne é cortada com faca e levada à boca com as mãos. Dentro de casa, uma criança chora…)

MARIA (agora com 23 anos de idade, grita) Simoa! Rita! Não ouvis a menina a chorar?

SIMOA (aparece) - Senhora?

MARIA - A menina está a chorar. (a serva Simoa sai)

FERNÃO MENDES (que tem 58 anos, pergunta) A Catarina ainda não acordou?

MARIA - Brincou toda a tarde com a Rita e adormeceu.

FERNÃO MENDES - Que vida a daquela menina !

MARIA - E querias tu um rapaz...

(A serva canta uma canção de embalar. Pausa)

MARIA - Em que pensais, marido, querido?

FERNÃO MENDES - Uma vez no reino de Bungo ofereceram aos portugueses uma comida na presença do rei. E como acharam estranho o nosso feio costume de comer a carne e o peixe com as mãos, vieram-nos oferecer muitos braços de pau…

MARIA (admirada) - Braços de pau, como os que se oferecem aqui a Santo Amaro?

FERNÃO MENDES (rindo) - Sim, para nós comermos com eles, enquanto lavávamos as nossas mãos sujas!

MARIA - E os portugueses o que fizeram?

FERNÃO MENDES (rindo mais) - Sentiram-se ofendidos.

MARIA - E esses selvagens?

FERNÃO MENDES (gargalhadas) - Riram-se, riram-se…

MARIA - Se pões no papel uma coisa dessas ninguém acredita. é por essas histórias que o senhor conta tão fora dos nossos usos e costumes...que não acreditam em vós, marido. (em tom irónico repete o adágio popular) Fernão, mentes? Minto! (Pausa) Mais uma vez não fostes eleito para esse cargo na Santa Casa da Misericórdia.

FERNÃO MENDES - Perdi o lugar de procurador de São Lázaro e Albergaria.
MARIA - Que gente tão invejosa e tão ingrata ! E devem-vos tantos favores, Fernão Mendes!

(Rita entre empunhando um castiçal com uma vela acesa, que coloca sobre a mesa. Depois, enche uma bacia de estanho na caldeira da chaminé, pega numa toalha de linho e dirige-se ao casal. Maria é a primeira a passar as mãos por água; depois o marido. Ambos se enxugam na toalha. A rapariga vai em seguida retirar da mesa os restos de comida, que despeja num latão. Retira igualmente a loiça, as facas e os copos.)

FERNÃO MENDES - Ontem vi o Rei em Lisboa, Iá para a Sé, a ouvir missa. Grande acompanhamento. O cardeal D. Henrique pareceu-me adoentado.

MARIA - O nosso rei é um menino de catorze anos. Tão desejado fora o seu nascimento que ainda não perceberam que cresceu.

FERNÃO MENDES (enche-se e vai buscar papel tinteiro de metal) - Não deixeis nossa filha mexer-me nos papéis. Há dias encontrei páginas rasgadas e a areia do tinteiro espalhada pelo chão.

MARIA (pega numa cesta e retira roupa que vai dobrando) - Esteve hoje um sol de África. A roupa secou tanto que até parece pau… como os paus para comer, os bracinhos que vos ofereceram lá nessa terra… (Ri-se, dando palmadas na roupa)

FERNÃO MENDES - Não vos incomodais com o meu amigo sol. Sem ele e sem seu fogo abençoado não seria nada.

MARIA - Trouxestes trabalhos de Lisboa?

FERNÃO MENDES (feliz) - Hoje tenho carta de alforria.

MARIA - Não estás farto de tanto escrever?

FERNÃO MENDES (com exaltação) - Maria! Minha boa e paciente esposa! Finalmente chegou o dia de eu trabalhar para vós e para nossas filhas!

MARIA (com espanto) - Vais trabalhar para nós ?

FERNÃO MENDES - Vou escrever tudo o que observei… Tudo, tudo… Vou escrever a minha peregrinação. (Noutro tom) Quantos anos vou levar neste louco projeto? Creio que não sei. A vida é incerta, os compromissos têm-me forçado a adiar esta empresa.

MARIA - Vais pôr no papel tudo… tudo, tudo? Cuidado, vê no que te metes, Fernão Mendes?!

FERNÃO MENDES - Começarei já! A vida que me resta pode não ser suficiente para acabar esta tarefa. Mas o bom Deus vai estar comigo… (Põe as mãos e sobe o olhar) Não é verdade, meu Senhor?

MARIA (aflita) - Tenha cuidado com a escrita, esposo meu! Dizeis coisas tão atrevidas que chocam muitos ouvidos. Há gente suspeita por todos os lados, que vos querem mal… Bem sabes que são numerosos os que ousam chamar-vos mentiroso…

FERNÃO MENDES (ri-se e repete o adágio popular ironicamente) - Fernão, mentes? Minto.

MARIA (admirada) - Ãnh? Mas isso é que é novidade para mim, querido esposo! Como é? Repita mais uma vez…

FERNÃO MENDES (voz grossa) - Fernão, mentes? Minto.

MARIA - Que línguas tão bem cortadas! O meu santo pai, que Deus tem, repetia que os portugueses são um povo de invejosos, de maldizentes e de desordeiros… (Repete) “Fernão, mentes?” Querem dizer na deles que tudo o que dizes ou escreves são mentiras!...

FERNÃO MENDES - “A gente que viu pouco do mundo, como viu pouco, também costuma dar pouco crédito ao muito que outros viram.”

MARIA - Cada dia compreendo melhor a razão dos poderosos não vos terem pago os serviços prestados na Índia.

FERNÃO MENDES (solene) - Maria, enche dois copos com o nosso vinho.

MARIA - Dois copos?

FERNÃO MENDES - Dois copos.

MARIA - Mas eu já bebi à ceia.

(A esposa obedece-lhe e entrega-lhe um copo)

FERNÃO MENDES (num brinde) - Bebamos pelo meu trabalho, pelas nossas filhas e pelo rei-menino D. Sebastião!

(Abraçados, tocam os copos)

SIMOA (entra) - Com licença. (Volta o rosto ao vê-los abraçados) Perdão!

MARIA - Podeis ir comer. Chama o Pêro Carriço.

SIMOA - Eu aviso os senhores do que está a acontecer na cocheira.

MARIA - Mas que há?

SIMOA - O Pêro Carriço está doidinho de todo! Chora e berra agarrado à égua e por preço nenhum se afasta dela. Dá punhadas na terra e beija o animal. Ou me engano muito ou a besta está na agonia. É um quadro que corta o coração. Aquele homem quer tanto o animal como se quer a um filho.

FERNÃO MENDES - Ide ver o que se passa, Maria.

(As duas mulheres saem. O escritor senta-se à mesa, leva a pena à boca para amaciar o aparo molha na tinta e, por fim, escreve. A luz reduz-se à figura de Fernão Mendes).

VOZ DE FERNÃO MENDES- «Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos que por mim passaram começados quando tinha 28 anos e no melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da Ventura que parece que teve como único objetivo perseguir-me e maltratar-me, como se isso fosse uma grande glória; porque vejo que, não só me fez viver na pobreza desde que nasci, como também me quis levar às portas da Índia, onde os trabalhos e os perigos nunca pararam de chegar à minha vida. Mas por outro lado, quando vejo que Deus sempre me salvou dos perigos, acho que não tenho tanta razão de me queixar, só tenho de lhe dar graças por este presente, por poder estar a escrever este livro de viagens que vou deixar por herança à minha família...»

(Durante a dissertação surgiu um moço de 14 ou 15 anos - é Fernão Mendes jovem - que se coloca no lado oposto da tampo da mesa, observando o escritor. Bebe o vinho de um dos copos, faz gaifonas… Estamos no plano da memória em que FMP fala consigo próprio recordando os primeiros anos da sua vida / espécie de analepse)

FERNÃO JOVEM - Ao olhar pra ti, Fernão Mendes, vejo-te no que me tornei. Passaram muitos anos. Quantos? Se não erro... fazes sessenta pro ano que vem. Tinha doze quando o tio me pôs em Lisboa para me libertar da miséria da casa paterna na vila de Montemor-o-Velho.

FERNÃO MENDES - Diabinho da minha infância, que pretendes de mim? Vens pra avivar a memória do velho em que te tornaste? Só o Inverno me tolhe os ossos e as carnes. Recordo-me e até me revejo na tua mocidade. E sinto no sangue os medos que me forçaram a fugir. A minha primeira aventura fora quando embarquei no cais da pedra numa caravela de Alfama que transportava cavalos para Setúbal, onde naquele tempo estava el-rei D. João III.

FERNÃO JOVEM - Em frente de Sesimbra, um corsário francês abalroou o nosso barco e reduziu-nos a escravos. Pela primeira vez saboreei a dor do chicote e isso dói muito quando chega na pele, infelizmente tenho muita experiência. Pouco depois uma nau foi apanhada e nós abandonados nus, em pêlo, na praia de Melides como mercadoria sem valor.

FERNÃO MENDES - A memória não me vai trair nesta escrita, a não ser para alguns pequenos detalhes. Os meus receios, o meu medo, residem somente na maneira como irás contar a minha peregrinação. Os tempos pioraram desde a morte de el-rei D. Manuel. As palavras têm de ser medidas, pesadas, disfarçadas por vezes. Nem toda a verdade crua pode ser posta no papel. Todos os dias conhecemos novas proibições de livros e de escritos. Querem cada vez mais gente no reino. Ali do alto do Pragal, assistimos a vários queimadores no Terreiro do Paço. Hereges, bruxas, feiticeiros, mercadores, magistrados, judeus... cristãos novos…

VOZ (repercute num eco) - Judeus... cristãos novos…

FERNÃO MENDES - A máquina da Santa Inquisição não pára de torturar seres humanos. Vivemos tempos de terror... Os homens tornam-se hipócritas para não serem apanhados na rede. Tempos pavorosos... não Fernão Mendes Pinto. (Encara o jovem) Oh, como invejo os anos da minha juventude...!

FERNÃO JOVEM - Eu fui feliz?

FERNÃO MENDES - Feliz... não foste. Andaste sempre a fugir. Mas, vivias cheio de ambições e acreditavas que podias enriquecer. Sonhavas em ser poderoso…

FERNÃO JOVEM - E não o foste? Não conquistaste a riqueza e o poder?!

FERNÃO MENDES - Quando chegar a altura... eu hei-de narrar o que se passou, escreverei tudo com verdade...!

FERNÃO JOVEM - A verdade verdadeira? (E soltou uma gargalhada) Olha bem para mim, Fernão Mendes.

FERNÃO MENDES (sopra enfadado, e retoma o discurso) - Como eu estava dizendo... vivia cheio de ambições e lia tudo quanto apanhava diante dos olhos. E também escutava, sabia ouvir os mais sabedores e experimentados homens. Procurava tanto um bom livro como perseguia com o olhar a mais bela e tentadora das mulheres. Cresci e fiz-me homem, este que sou hoje do nome de Fernão Mendes Pinto.

(No interior da casa, ouvem-se gritos e choro. A luz que banha o jovem Fernão Mendes Pinto dá lugar à penumbra e oculta-o. O escritor ergue-se, inquieto)

FERNÃO MENDES - Maria! Que gritos são esses?

(A claridade volta à cena. Pêro Carriço entra aos gritos, lavado em lágrimas, amparado pelas mulheres)

PÊRO CARRIÇO - Morreu! Morreu a minha égua, a minha amiga... Eu não posso viver sem o animal...!

SIMOA - Qu'é isso, homem!? Não chores, a égua não é uma alma cristã!

PÊRO CARRIÇO - Aqui el-rei! Sozinho! Abandonado!...

MARIA - Deem-lhe um copo de vinho. Sentem-no.

PÊRO CARRIÇO - Fartei-me de avisar! Não montem o animal! Não montem o animal! Ninguém deu ouvidos e mataram-no... Mataram-no, malvados!

FERNÃO MENDES - Trouxeram o homem para quebrar o meu trabalho? Não quero ouvir esta lamúria!

PÊRO CARRIÇO - A minha égua está morta! Mataram a minha companheira!

(As servas levam o camponês. Maria encara o marido, preocupada. Fernão Mendes senta-se incomodado, e tenta recomeçar a escrita. Mas, num gesto brusco, atira a pena para a mesa)

 (Mutação)



ATO I
6° QUADRO

(Primavera de 1575. Decorreram sete anos após o último quadro. Uma tapeçaria aparece numa das paredes. O número de cadeiras duplicou: quatro. A idade dos personagens deve ser atualizada: Fernão Mendes, 65 anos; Maria, 32; Catarina, 13; Joana, 12; Simoa, 50 e Rita, 27 anos)

MARIA (compõe o cabelo da filha mais velha) – Quando o senhor Francisco de Andrade chegar fazes uma vénia. Se ele fizer menção de te beijar... beija-o tu primeiro. (Chama a outra filha) Joana! Onde se meteu aquela menina?
JOANA – Senhora minha mãe!
MARIA – Meu Deus! Toda suja! Ai, o teu vestido! (Bate-lhe) Eu não quero que pegues nos vitelos! (Grita) Simoa! Simoa!...

SIMOA (entra) - Minha senhora, eu fartei-me de gritar para as meninas não andarem com os vitelinhos no regaço! Elas cegam uma mulher!

MARIA - O senhor Andrade está a chegar e as minhas filhas parecem duas mendigas!

SIMOA - Foi quando eu voltei costas. (Vai buscar uma bacia com água e um pano, e tenta remediar) Põem tonta uma alma cristã!

CATARINA (divertida, executa vénias pela sala, e repete como se estivesse do senhor Francisco de Andrade) - Vossa senhoria, como está? Deus vos guarde, meu senhor! E a vossa esposa e minha senhora?

(Joana chora ao ser penteada pela mãe e pela serva)

MARIA (aponta Catarina) - Que filhas, meu Deus! Não levam nada a sério! Está uma mãe a educá-las, ensinando-lhes as melhores maneiras e cortesias, e elas ainda gozam!...

FERNÃO MENDES (entra com um braçado de livros, que coloca sobre a mesa) - Eu estava lá dentro e já ouvia os vossos gritos. Sempre um alvoroço quando alguém nos visita!

MARIA - São as nossas filhas!

FERNÃO MENDES - Mas os gritos são teus! Cala-te! (Noutro tom) Não podemos viver neste desassossego. A minha casa mais parece um antro de regateiras!

MARIA - Estas filhas tiram a paciência de uma alma cristã! Só quem passa um dia inteiro…

CATARINA (debruçada sobre a mesa, mexe nos livros e lê os títulos) - “Décadas da Ásia”... João de Barros, “Crónica do Felicíssimo Rei Dom Manuel”... Damião de Góis, “Lendas da Índia”... Gaspar Correia… “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões…

MARIA (joga uma palmada na filha) - Está quieta, Joana ! Com um vestido tão bonito, e cheio de nódoas! (Molha a ponta da toalha e tenta limpar) O senhor que nos visita é de muita cerimónia. Está na Santa Casa da Misericórdia com o vosso pai.

CATARINA - O senhor não tem livros do senhor Francisco de Andrade?

FERNÃO MENDES - Não, minha filha, mas conheço alguns poemas e traduções suas.

CATARINA - Por que razão estás a pôr tantos livros sobre a mesa?

FERNÃO MENDES - Nesta família raramente conhecemos o lugar das coisas. Quando se procuram os livros é preciso voltar a casa do avesso. Dentro das arcas da roupa e do pão, debaixo da cama e até descobri na adega um livro rasgado e cheio de nódoas de vinho.

MARIA - Pergunta à Catarina onde ela põe os livros depois de os ler.

FERNÃO MENDES - Ouves a tua mãe? Achas bem a falta de respeito pelos livros?

CATARINA - Não é por mal que os deixo aqui e ali. Mas é minha mãe quem me grita quando me apanha a ler. E eu assusto-me e abandono o livro em qualquer lugar.

FERNÃO MENDES - Porque gritas tanto com a Catarina?

MARIA - Ela já tem idade para ajudar nas tarefas da casa. Não deve estar tardes inteiras na leitura e a não pensar em mais nada.

CATARINA - Não é verdade, senhor meu pai! Eu não estou tardes inteiras a ler!

MARIA- Deves ouvi-la para melhor conheceres a falta de respeito que há nesta casa! Se eu lhe batesse por todas as más respostas... ao regressares a casa não a ias reconhecer de tão negra que a punha!...

CATARINA - Gosto de ler e foi lendo que aprendi. Não nasci para serva como a Simoa.

SIMOA (entre dentes) - Ah! Víbora!...

JOANA - Cá por mim não gosto nada de ler. Que seca!

FERNÃO MENDES - Uma filha lê; a outra, vai para burra!...

CATARINA (trocista) - Tende tento no que dizeis, senhor meu pai. A mãezinha é de más letras…eu nunca a chamei pelo nome desse bicho!

MARIA (atira com um objeto à filha, que foge) - Malvada! A quem sairȧs tu, minha… peste?! (para a serva Simoa) Ah, Simoa, tu é que podes dar valor às nossas canseiras!

SIMOA - Cada vez pior, minha senhora. Dantes contávamos com os dois braços do Pêro Carriço… Agora, o pobrezinho, é um estorvo. Encafuado no sótão da adega, ali suja, mija, vive naquela esterqueira. Deus me perdoe, mas uma alminha assim era uma caridade ser recebida no Céu.

MARIA - Que fazemos dele, Fernão Mendes?

FERNÃO MENDES - Esperamos que deus o leve. Serviu de criança a vossos pais, não somos nós agora que vamos atirá-lo para a azinhaga. Encarregai a Simoa de contratar um homem para a quinta.

SIMOA - Senhor, o Pêro Carriço não quer!

FERNÃO MENDES - Não quer? Não quer o quê? 

SIMOA - Se ele apanha outro homem na quinta… diz que o mata.

(Catarina alheia-se da conversa dos pais, pega num livro e lê em voz baixa, passeando pela casa)

FERNÃO MENDES - Mata? É tonto!

SIMOA - Vossa senhoria tem em mente o que aconteceu nas últimas vindimas? Ele agarrou numa forquilha e quis correr com os “ratinhos”... Às mulheres, apareceu-lhe nu em pêlo... Foi o cabo dos trabalhos para o amarrar e metê-lo no sótão.

MARIA - Fernão Mendes, sois mamposteiro[1] na Santa Casa da Misericórdia… Não podes meter o pobre no Hospital dos Lázaros, em Cacilhas?

FERNÃO MENDES - O homem não está enfermo. Está velho.

SIMOA - O Carriço está doido, meu senhor! O infeliz vai para a beira do caminho dizer mal dos senhores, e acusá-los de ladrões! Que lhe roubaram a quinta, que lhe mataram a égua!...

MARIA - Não podemos por mais tempo consentir tamanha vergonha.

CATARINA (recita uma estância de “Os Lusíadas”) -

        “E também as memórias gloriosas
D’aqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África et de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando”...

(Rita entra seguida por Francisco de Andrade. Este é um gentil-homem de 35 anos. Bem-falante e de gestos palacianos).

RITA - O senhor D. Francisco de Andrade.

FRANCISCO DE ANDRADE (que traz um maço de papéis enrolado num pedaço de pano) - Que Deus esteja presente nesta virtuosa casa!

(O ambiente familiar não poderia ser melhor à primeira vista : o pai consulta livros, a filha mais velha recita Camões, imitando Joana a irmã, e as duas servas perfilam-se diante da senhora…)

FERNÃO MENDES (indo ao encontro do visitante) – Bem-vindo seja à minha pobre casa, senhor.

FRANCISCO DE ANDRADE (cumprimenta a senhora e as filhas) - Senhora dona Maria… Meninas…

CATARINA (numa vénia) - Vossa senhoria como está? E a vossa esposa e minha senhora?

(Joana pode repetir a vénia da irmã. Simoa demora-se na reverência e acaba por sair)

FRANCISCO DE ANDRADE (solene) - Senhor Fernão Mendes, disse-vos na última reunião que tinha pressa em estar convosco. A razão é a leitura do vosso trabalho. (Ergue o maço de papéis)

FERNÃO MENDES - Trata-se duma rude e tosca prosa essa que tendes aí nas vossas mãos…

FRANCISCO DE ANDRADE - Em pouca conta tendes o vosso labor literário. Ao longo desta primeira metade da vossa escritura comovi-me e deslumbrei-me vezes sem conta. Que engenho, que soma de notícias sobre os povos e as terras que percorreu.

FERNÃO MENDES - Achas que não é perca tempo concluí-la?

FRANCISCO DE ANDRADE - Diante da riqueza destas páginas tendes a obrigação de vos apressar. Que memória a vossa, que abundância de acontecimentos, que coisas espantosas testemunhais, Fernão Mendes!

FERNÃO MENDES - Escrevo para que estas meninas possam conhecer algo do meu passado. Só por elas e para elas empreendo esta longa e trabalhosa empresa.

FRANCISCO DE ANDRADE (sorrindo-lhe) - Exageras, exageras em modéstia e humildade, meu bom amigo. Quem recebe de Deus tão precioso talento tem obrigação de saber o que vale.

FERNÃO MENDES - Há cinco anos que vivo embrenhado nesta floresta de papéis sem a mínima noção ou juízo de valor. Tenho vivido horas de completa desorientação como uma nau batida pela tormenta em busca de porto seguro! Como sabeis não sou um escritor, não andei na escola, muito menos na Universidade.

FRANCISCO DE ANDRADE - Eu frequentei por alguns anos a Universidade de Coimbra. E por vida minha não dei fé do talento e do engenho terem aprendizagem naquelas sábias paredes. Deus dotou-vos, Fernão Mendes Pinto, com o que não se recebe dos mestres, por mais doutos e sabedores.

FERNÃO MENDES - Mas não tens reparos a fazer a estes papéis?

FRANCISCO DE ANDRADE - Quem sou eu para vos emendar? Este vosso grande livro uma vez concluído e ao dar entrada numa oficina de impressão…

FERNÃO MENDES - Não penso em tal destino.

FRANCISCO DE ANDRADE - É de ter, em conta que toda esta prosa é para ser impressa!

MARIA - Com vossa licença, senhor Francisco de Andrade. Se me permitis, retiramo-nos. (Para as filhas) Vamos, meninas.

CATARINA (renitente a sair) - Minha mãe, eu queria…

MARIA - A menina não quer nada!

JOANA - Vamos ver a vaca e os bezerros, mana.

MARIA - Simoa, não consintas Não consintas! Não queres uns açoites, Joana?

(Saem todas. Os dois homens sentam-se à mesa)

FRANCISCO DE ANDRADE (retira o pano que envolve o manuscrito. Acarinha os papéis, com devoção) - Que trabalho maravilhoso que iniciaste. A leitura cresce de interesse e é sempre com pesar que a interrompemos. Durante as horas em que estamos distantes da vossa escritura o nosso pensamento não se alheia das figuras e das nações que descreves com tão viva intensidade.

FERNÃO MENDES - Peço-vos que a vossa crítica seja severa, sem piedade, à altura da nossa amizade. (Há uma hesitação no visitante). Tens algo a dizer, senhor Francisco de Andrade?

FRANCISCO DE ANDRADE - Se me permitis.

FERNÃO MENDES - Claro, falai.

FRANCISCO DE ANDRADE - Neste oceano de prosa não há paragens para o leitor. Começais a narração e essa torrente de figuras, de acontecimentos não tem descanso. O vosso testemunho só tem a ganhar dividido em pequenos capítulos. Cada uma dessas paragens poderia ser encabeçada talvez por um título.

FERNÃO MENDES - Achais…?

FRANCISCO DE ANDRADE (como que receoso da sugestão) - Mas o importante é que prossigais no vosso trabalho. Que memória a vossa, Fernando Mendes! Estás a narrar acontecimentos vividos por vós há trinta anos, não é assim?

FERNÃO MENDES - Quando regressei ao reino, no Verão de 1558, e durante a longa viagem, tentei rememorar e tomar apontamentos. No meu baú vinham também papéis cheios de nomes e de datas que me têm ajudado imenso.

FRANCISCO DE ANDRADE - A vossa memória espanta e deslumbra o leitor. Mas grande e temerosa empresa vos aguarda ainda nesta segunda parte. A vossa passagem pela Companhia de Jesus, as missões na China e no Japão, a amizade e os trabalhos com o santo padre Francisco Xavier são escritos do maior interesse e proveito.

FERNÃO MENDES (muda de assunto, brusco) - Disseste que há vantagem de dividir em capítulos?

FRANCISCO DE ANDRADE - Qualquer leitor corre o sério risco de se perder neste oceano de prosa. (Malicioso) Se me permitis uma graça: o leitor tem necessidade de respirar.

FERNÃO MENDES (apossa-se dos papéis) - Por estes dias, recomeçarei a escrever. Assim Deus me dê vida e talento.

FRANCISCO DE ANDRADE - Espantoso! Treze vezes cativo e dezassete vendido. A vossa odisseia tem-se espalhado nos últimos tempos pelo reino. Não deve ser novidade para vós conhecer os numerosos admiradores que muito vos louvam. Mas outros há, e não são poucos, que descrêem das vossas histórias. Sabeis disso?

FERNÃO MENDES (rindo) – Fernão, mentes? Minto.

FRANCISCO DE ANDRADE - É curioso: entre os incrédulos que vos acusam de fantasioso, nenhum desmente a vossa amizade com o padre-mestre Francisco Xavier.

FERNÃO MENDES - Avolumam-se os que me interrogam sobre essa alma de eleição.

FRANCISCO DE ANDRADE (pega num volume que está sobre a mesa) - “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões.

FERNÃO MENDES - Estivemos em Goa pela mesma altura. Com o Luís Vaz… E falámos sobre o mau governo da Índia. Ele estava a viver quase de esmolas. Escreveu também cartas, elogios fúnebres, poesias de louvor… Achei-o muito impulsivo, uma alma inquieta. Bebia com soldados e mulheres perdidas. Lá ficou com as suas queixas. Pobre Luís Vaz! Eu já o sabia poeta de alto merecimento. (Noutro tom) Entretanto, embarquei com o padre Belchior rumo ao Japão e não tive mais notícias suas. Há dois anos descobri o livro dele, em Lisboa. Comprei-o por 400 réis, que na altura me custaram a desembolsar. Mas compensou, visto ser uma obra de génio. (O visitante observa o volume, admirado) Que foi? De que se trata?

FRANCISCO DE ANDRADE - O meu volume dos Lusíadas tem o desenho da capa diferente.

FERNÃO MENDES - Diferente? Perdoa-me, mas não é possível!

FRANCISCO DE ANDRADE - Neste desenho o pelicano olha para a esquerda… Na minha capa o pássaro olha para a direita.

FERNÃO MENDES - Tens a certeza?

FRANCISCO DE ANDRADE - Absoluta, Fernão Mendes. É capaz de ser uma edição falsa.

FERNÃO MENDES - Falsa?

FRANCISCO DE ANDRADE - Venderam os primeiros trezentos… e o impressor atirou para o mercado outros tantos. Terão sido à revelia do pobre Luís Vaz?

FERNÃO MENDES- Tão exaltado ele é, se sabe do furto, desanca o impressor! Não é homem para que trocem dele!...

FRANCISCO DE ANDRADE - Hei de falar nisto em Lisboa.

FERNÃO MENDES - Como é a primeira vez que me visitam… eu faço gosto de vos mostrar a minha quinta.

FRANCISCO DE ANDRADE - Recebeste-a como dote de vossa mulher?

FERNÃO MENDES - É verdade, recebi-a pelo casamento como dote!

(Encaminham-se para a saída)

FERNÃO MENDES - El-rei está em Almeirim?

FRANCISCO DE ANDRADE (sorrindo) - Continua a adorar a oferta de Sua Santidade: uma das setas tinta de sangue do mártir São Sebastião.

FERNÃO MENDES (sorrindo também) - Já possuíamos um braço do Santo ofertado por Gregório XIII…

FRANCISCO DE ANDRADE - Agora por relíquias! Tendes objetos pessoais do padre mestre Francisco Xavier?

FERNÃO MENDES - Objetos pessoais?

FRANCISCO DE ANDRADE - Pequenas relíquias santificadas pelo toque das suas mãos.

FERNÃO MENDES - Tive em meu poder alguns documentos escritos pelo seu próprio punho. Mas perdi-os num naufrágio. Perdi tudo. (Interessado) Porquê?

FRANCISCO DE ANDRADE (encara-o, perplexo) - Por nada. Por nada. (Noutro tom) Vamos então ver a quinta?

(Mutação)




FIM DO 1° ACTO



ATO II
1.° QUADRO

(Setembro de 1577. Vindima. Recanto de adega com larga selha onde se pisam as uvas. Ambiente festivo e pagão. Estão a dar ao pé: Fernão Mendes, Catarina, Joana e mestre Tanoeiro. Cantam e pisam, bailando. Da quinta chegam-nos sons de pífaros e tambor. O pai e as filhas têm uma coroa de flores na cabeça. Simoa e Felícia transportam cabazes com uvas que deitam na selha. Vasilhas e materiais de tanoaria estão espalhados pela adega)

FERNÃO MENDES (canta) -
                         ”Muitos bens deu Deus na terra
                          e a melhor são as parreiras
                          e as uvas que fazem guerra
                          a sede de regateiras.”

                          “Pisar uvas no lagar
                           não nos toma de fadiga
                           é uma forma de bailar
                           cantando uma cantiga.”

TANOEIRO (canta)-
                    ”Tu dali e eu daqui
                     mas tu hás-de começar
                     que o vinho corra per hi
                     até nos fazer sujar.”

                      “Estas nódoas nos focinhos
                       nós as iremos lavar
                       e beberemos cinquinhos
                       que estas uvas hão-de dar”

CATARINA (canta)-
                   ” Quando acabar de beber
                      fico muito estonteada
                      nem sou capaz de saber
                      se inda estou em Almada.”

                     “E aqui o meu namorado
                      este galante mocinho
                      perde o siso e o cuidado
                      quando se mete no vinho.”

SIMOA (vaza o cesto, brincalhona) - Estais zangado comigo, mestre Brás?

TANOEIRO (homem entroncado, de 50 anos) - Zangado? Há que tempos não me sentia tão feliz!

SIMOA (brejeira) - Não vejo os vossos cabelos floridos! Não quer algumas florzinhas?

TANOEIRO - Quer a tia Simoa oferecer-me uma coroa?

FELÍCIA (que ouviu o pedido, responde, galhofeira) - Quem vos vai florir sou eu! Sou eu, mestre Brás!

SIMOA - Não aceiteis! Não aceiteis! Quem vos vai trazer as florinhas sou eu!

CATARINA (dá o braço ao pai e beija-o) - Meu pai, credes que há milagres na festa do vinho?

SIMOA (puxando a comadre) - Olhe que o mestre está debaixo de olho! Não vos metais com ele!

FELÍCIA - Quem tem fôlego é que sopra a gaita!

SIMOA - Comadre, não desejais o homem para vós! Não sejais desmancha prazeres!...

(Saem a discutir)

FERNÃO MENDES - Milagre de deus Baco, o mensageiro de alegria! O diabo sai do sumo da uva e trepa aos miolos e ao coração dos bebedores!

TANOEIRO (bebendo do jarro) - A uva pinta de sangue as nossas pernas! É sangue de deus, é vinho que nos enche a barriga!

FERNÃO MENDES - Não vos afogueis, mestre Tanoeiro! Tenho-vos na minha quinta para armar as pipas e não para as vazar!...

CATARINA (rindo) - O senhor meu pai coroado de flores na cabeça! Quando minha mãe entrar na adega…

FERNÃO MENDES (baila, folgazão) - … Convidá-la-ei para esta bela dança! (abraça as duas filhas e rodopia) Maria, minha esposa, descalçai-vos, mostrai os vossos magníficos pés e bailai connosco!

CATARINA - E ela obedece-vos? Obedece-vos, senhor meu pai?

FERNÃO MENDES - Que ninguém saia de dentro da selha!

JOANA (amedrontada) - O senhor acredita que nossa mãe se atreva a pular para a selha?

CATARINA - Quem manda é nosso pai!

JOANA - Mas a senhora nossa mãe… é que nos bate! …

(entra a comadre que traz uma coroa de flores, seguida por Simoa que perdeu a corrida. Lutam por momentos)

FELÍCIA - Mestre, ponde a jeito a vossa cabeça!

SIMOA (a disputar) - Aceitai as minhas flores tão bonitinhas, não queirais as dela, mestre Brás!

CATARINA - Duas galinhas para um galo!

(O tanoeiro baixa a cabeça e recebe as flores das mãos de Felícia. Amuo de Simoa)

SIMOA (amarfanha as flores, vencida) - Eu não esperava de vós uma nega destas!

FELÍCIA (radiante) - Ganhei eu! Ganhei eu! Ah! Sou tão forte! (com um ar irritante)

SIMOA - A comadre ganhou porque eu deixei-vos passar à minha frente!

FELÍCIA (pirraça) - Bem feito! Bem feito!

SIMOA (ao ouvido dela) - Já vos esquecestes dos negócios em que estamos metidas?

FELÍCIA - Que negócios?

SIMOA (puxa para fora da adega) - Não vos façais de novas! (ao ouvido) As relíquias do santinho… (saem)

CATARINA - Mestre, pondes ainda com essa idade duas mulheres a guerrear em vez de dois homens com belos músculos?

TANOEIRO (que já não está muito são) - São velhas, menina, velha… Para velho basto eu! Gado deste é que me atormenta, e me põe flores no toutiço! Os passarinhos novos, sangue fresco e quente, mal peço um beijo, batem as asas.

JOANA - Catarina, acreditais que a nossa mãe é senhora para vir pisar as uvas?

CATARINA - Ride, mana, ride! E atirai as culpas para riba do nosso querido pai!

JOANA - E se a nossa mãe pegar num pau e nos bater?

CATARINA - Canta, Joana! Quem canta seu medo espanta! (canta)

-“ E aqui o meu namorado
este galante mocinho
perde o siso e o cuidado
quando se mete no vinho
e fica por seus pecados
vesgo o mais que nunca vi
tem os olhos enfrestados
se lho falares, ou assi,

Não saberás se olha a ti
se olha para os telhados
mas amorosos de mi
mui doces enamorados.”

SIMOA (entra e vaza uvas) - Não tarda nada vou chamar a senhora! Depois quero ver se a dança continua!

FELÍCIA (entra, preocupada) - Quero falar convosco, comadre.

SIMOA - Se a tia Felícia tivesse um naco de vergonha não me dirigia a palavra

FELÍCIA - Negócios são negócios.

SIMOA - E daí?

FELÍCIA - O rosário foi todo vendido. Conta a conta... já não tenho nada. E mais que houvesse. Devo-lhe trezentos réis.

SIMOA - Por seu conselho meti-me nessa mentira. Estou coberta de vergonha.

FELÍCIA - Eu sei, comadre. Mas os reais têm-vos feito bom proveito. (Puxa-a para si) Olhai que eu estava a brincar: não quero o homem para mim. Podeis ficar com ele.

SIMOA - Se não o queria... por que razão me não deixou flori-lo?

FELÍCIA - Lembrei-me dos tempos de rapariga… (muda de assunto) Agora temos que deitar mão às outras relíquias…

SIMOA - Que relíquias?

FELÍCIA - São perguntas que se façam aqui na adega?

(Saem)

CATARINA - Avançaste na redação do vosso livro, meu pai?

FERNÃO MENDES - Ontem trabalhei até tarde.

CATARINA - Haveis dito no domingo que estáveis às portas do Japão.

FERNÃO MENDES - Já cheguei à “pestana de mundo”.

CATARINA - O senhor meu pai já contou a história do filho do rei? O que experimentou a sua espingarda e que morreu ao dar um tiro?

FERNÃO MENDES - O príncipe não morreu. Ficou muito ferido, perdeu um dedo polegar, mas eu curei-o com uma mezinha. Ele encheu o cano de pólvora, meteu o pelouro e a arma partiu-se-lhe em três partes. Dessa vez fui condenado à morte…

(Harpejos nipónicos. A luz torna-se colorida, irreal. As figuras na lida do lagar, mas os gestos são agora lentos, parecendo caminhar sobre nuvens. Simoa e Felícia continuam a vazar as uvas na selha)

VOZ DE FERNÃO MENDES - «Não havia ainda bem duas horas que estávamos nesta calheta de Miaygimá, quando o príncipe desta ilha de Tanixumá, veio ao nosso barco acompanhado de mercadores e gente nobre e com caixões de prata. Depois de se fazerem as cortesias costumadas, ele chegou-se a nós, e vendo por nossas caras que não éramos chineses, perguntou que gente éramos. O capitão corsário lhe respondeu que vínhamos de uma terra chamada Malaca, para onde tínhamos vindo há muitos anos de outra que se chamava Portugal.»

               (Regresso à realidade e aos movimentos normais)

RITA (entra, afogueada) - Meu senhor! Meu senhor!

FERNÃO MENDES - Que quereis?

RITA - Chegaram duas mulheres e um homem que querem pedir uma coisa ao senhor! É gente pobrezinha, mas muito delicada e de lágrimas piedosas!

JOANA (assustada) - Agora é que a senhora nossa mãe aparece!

FERNÃO MENDES - A minha mulher que resolva. Eu não posso abandonar o baile!

RITA - Mas a minha senhora, coitadinha, está muito exaltada, uma vez que desconhece a razão de tal pedido muito empenhado.

FERNÃO MENDES - A senhora que ponha fora essa gente! Não sou físico nem curandeiro!

RITA - Não são mezinhas para a cura de maleitas, o que os pobres exigem!

FERNÃO MENDES - Querem favores para a Santa Casa da Misericórdia?

RITA - Também não, meu amo! Os tristes imploram relíquias... Relíquias milagreiras!...

FERNÃO MENDES - Relíquias? Que relíquias?

RITA - Imploram umas continhas. Entregam tudo quanto têm, meu amo, que é bem pouco. Os tristes pedem as continhas do rosário que o senhor trouxe da Índia.

FERNÃO MENDES (a exaltar-se) - Eu não tenho relíquias nem vendo nada! Fala claro, rapariga! Parva! Não sabes dar um recado como deve ser!

RITA (baralhada) - Valha-me Nossa Senhora do Amparo! Se calhar não entendi.

FERNÃO MENDES - Voltai para junto da minha mulher!

RITA - Mas os pobres só falam no meu amo e nas relíquias! São umas continhas dum terço que lhe deu o santinho das Índias!...
  
(Simoa e Felícia escutaram parte do diálogo. Ambas tremem de medo. Rita chora alto)

FERNÃO MENDES - A minha mulher que expulse essa gente e não perca mais tempo!

 (Rita sai, a correr. As duas comadres, Simoa e Felícia, benzem-se, aflitas)

JOANA - Que foi, senhor meu pai?

CATARINA - Será por terdes conhecido o santo padre Francisco Xavier?

FERNÃO MENDES - Estranha coisa! Correm boatos que dizem que eu possuo objetos desse santo homem! Essa mentira não para de crescer!

CATARINA - E agora, senhor meu pai?

FERNÃO MENDES - A vossa mãe sabe muito bem resolver estas situações!

(Regresso à narração do livro que está a ser escrito. Outra luz e lentidão de movimentos das personagens. Felícia e Simoa, em pânico, abandonam a adega)

VOZ DE FERNÃO MENDES - «Nós os três portugueses, como não tínhamos mercadorias para nos ocupar, passávamos o tempo a pescar, a caçar e a visitar templos. O Diogo Zeimoto, em particular, gostava de disparar com uma espingarda e por isso chamou a atenção de uns japoneses que nunca tinham visto uma arma de fogo como a dele. Informaram logo o Nautaquim que, espantado com esta novidade, mandou logo chamar o Zeimoto. Ao ver chegar Zeimoto com a espingarda às costas, dois chineses carregados de caça, e desconhecendo o segredo da pólvora, o Nautaquim e todos os japoneses convenceram-se que estavam perante atos de feitiçaria.»

(Surge Maria, seguida pelas comadres Simoa e Felícia. A atitude violenta da primeira contrasta com a submissão e medo das duas impostoras. Aos primeiros gritos da dona da casa, a cena regressa à normalidade)  
  
MARIA - Fernão Mendes! Fernão Mendes! Tende respeito pelo vosso nome e pelo cargo que ocupais. A pisar uvas com as filhas e ao lado do tanoeiro! (Enérgica) Joana! Catarina! Meninas, para fora do lagar!

(As duas raparigas pulam da selha. Joana chora, amedrontrada; Catarina solta gargalhadas. O mesmo ar divertido assalta o escritor)

MARIA - Zombais, Fernão Mendes?! A velhice roubou-vos o respeito. E consentis que as vossas filhas prendadas, estejam de saias arregaçadas à barriga como qualquer serva?…

FERNÃO MENDES (desce da selha e cobre-se com um largo pano vermelho e sujo, que está ali perto, Sempre divertido) - Maria, colocais o meu nome e a minha pessoa num altar a que não deseja subir!

MARIA - Estou farta de ouvir as vossas histórias! Que todos repetem e que nos enchem de vergonha! Sois um procurador de São Lázaro e Albergaria!

FERNÃO MENDES - Mas será possível ter subido à vossa cabeça o cargo que eu desempenho na vila?

MARIA - Somos finalmente alguém nesta terra e pareceis esquecer-vos disso! A vossa maneira de falar e a confiança que dais aos empregados vai fazer com que não subais de lugar na sociedade, Fernão Mendes! O tempo que passais a escrever vai acabar por arruinar a vossa vida e a NOSSA!

FERNÃO MENDES - Perdeste o juízo, mulher!

MARIA - Em lugar de esconderes o que sofrestes, esses papéis vão pôr diante do mundo todas as vossas desgraças, misérias e até … até … (Bruscamente) Eu nem me atrevo a repetir. (Chora)

FERNÃO MENDES -Dizeis sandices pela boca fora e rompeis depois nesse pranto? Não estais sã do espírito, Maria Correia de Brito!

MARIA - Aqueles papéis bisbilhoteiros deviam ser queimados! Sim, queimados! Atear uma fogueira na quinta e reduzi-los a cinza!

CATARINA - Mãe! Atentai, no que estais dizendo? Queimar a grande obra do senhor nosso pai?!

MARIA - Somos pobres, muito pobres, minha filha! O vosso pai não se esforça, não dá um passo sequer, para amealhar cabedais. (Cheia de mágoa) Já foi muito rico, poderoso … mas deu tudo, meu Deus! … Que dote podemos prometer aos homens que tentem casar convosco, minhas filhas?

CATARINA - Mas nenhuma de nós foi pedida em casamento!

MARIA - Oh, Catarina! Há tantas meninas da vossa idade que já estão casadas! Tendes 16 anos, com essa idade, e até menos, casaram já princesas de Portugal (Com mágoa) Mas sem dinheiro nem rendimentos, aqui desterradas no Pragal, os melhores homens não vos pegam. As viúvas ricas conseguem casar-se primeiro!

FERNÃO MENDES (tenta às boas apaziguar as queixas da mulher) - Minha boa e santa mulher, quem vos desgostou para estardes tão fora de vós? (Tenta beijá-la)

MARIA (afasta-o) - Não me abraceis! Por ser vossa esposa mereço maior respeito! Lavais-vos, vesti-vos por quem sois e vinde então para junto de vossa mulher!

FERNÃO MENDES (senta-se num barril e indaga) - Que vos queria aquela gente há pouco?

MARIA - Pediam relíquias do santo Francisco Xavier.

FERNÃO MENDES - Relíquias do padre-mestre?

MARIA - Umas contas dum rosário espalhadas pela vila tem operado milagres. Os pais dum anjinho que está a morrer imploraram uma conta para salvar a criança. Foi comovedor. Ajoelharam-se a meus pés e prometeram ficar nossos escravos em troca da salvação do filho.

FERNÃO MENDES - Que dissestes a essa gente?

MARIA - O mesmo que vós responderíeis, se estivésseis presente.

(Simoa tem um forte ataque de choro que a todos surpreende. Rita é contagiada. Todos os outros estão imóveis.)

(Mutação)



ATO II
2º Quadro

(Tarde de Junho de 1578. Fernão Mendes escreve sobre a mesa. Papéis, livros, utensílios de escrituração.
Idades:Fernão Mendes, 68 anos ; Maria, 34; Catarina, 16 ; Joana 15; Telmo Pais,57 ; Simoa, 54; Tanoeiro, 51 e Rita, 31 anos)

VOZ DE FERNÃO MENDES - “Tem, para a parte do oeste, 5 ilhas muito grandes, em que há muitas minas de prata, pérolas, âmbar, incenso e seda, pau-preto, brasil, aguila brava e muito breu, ainda que a seda seja algum tanto menos que a da China. Os habitadores de todas estas terras são como os chins, vestem linho, algodão e seda, com alguns damascos que lhes trazem de Nauquim. São muito comedores e dados às delícias da carne, pouco inclinados às armas, que quase não têm, por isso parece que será muito fácil conquistá-los...”

MARIA (surge na entrada da sala) – Fernão Mendes, as nossas filhas ainda não regressaram da vila. O sol está a pôr-se, e eu começo a recear... Não será melhor verdes se encontrais as meninas?

FERNÃO MENDES PINTO - A Simoa foi com elas?

MARIA - Bem sabeis que não consinto saídas sozinhas. Mas a Catarina faz sempre o que deseja... (como o marido mantém os olhos nos papéis, irrita-se) Fernão Mendes! Estou a falar consigo.

FERNÃO MENDES PINTO - Ouvi muito bem o que acabaste de dizer. As meninas estão na vila acompanhas pela nossa serva.

MARIA - Mas com este alvoroço que varre o reino: a tropa em Lisboa, o Tejo a abarrotar de navios... a música... os tiros... Eu  sei  lá se a Catarina não arrastou a Joana e a Simoa...

FERNÃO MENDES PINTO -  ...para Lisboa? Não!

MARIA - Esta guerra que o nosso Rei D. Sebastião quer ir fazer às Áfricas tem ensandecido muitas cabeças. Meu Deus! Que o dia de hoje não seja o começo duma grande desgraça!

FERNÃO MENDES PINTO - (levanta-se e enerva-se) Com mil raios, mulher, que agoiro estás p’raí a conjeturar?

MARIA - Vós é que estais cego com a redação do vosso livro! “A Peregrinação”! Esses malditos escritos, a toda a hora diante dos vossos olhos, fazem esquecer-te das vossas responsabilidades. Nunca mais fostes à Santa Casa da Misericórdia ver se havia trabalho para vós... voltais as costas à família e à nossa quinta... Que vida é a vossa, Fernão Mendes? Só papéis, papéis, papéis! (Espalha pela mesa o manuscrito, repugnada) É este entulho que vos vai dar de comer? Já esquecestes quantas bocas temos debaixo destes tetos?

FERNÃO MENDES PINTO (socorre os papéis, indignado) - Maria! Atreveis-vos? Ide ao médico, mulher! Tendes trinta e quatro anos, pensais e ralhais como uma velha rabugenta!

MARIA (soluça) - Estou velha, estou! Agora é que acertastes! Velha e mortificada de ralações e de trabalhos.

FERNÃO MENDES PINTO (paciente) - Maria, governai a vossa casa. tendes duas servas e um tanoeiro. Por altura das colheitas havemos de contratar mais uns braços para nos ajudarem. Quem está velho e sem forças sou eu que já tenho 68 anos! Alguma vez as amizades de prestígio e a Mesa da Misericórdia se atreveriam a não me ajudar? Acalmai-vos! Se as nossas filhas vos disseram que iam visitar a casa de D. João de Portugal… foram mesmo, e vós sabeis a boa conta em que essa família nos tem…

MARIA - Mas a guerra que vão fazer nas Áfricas? O arraial de Lisboa?

FERNÃO MENDES PINTO - Estamos em Almada. Há o rio pelo meio. O arraial não é nesta banda. (Suspira, dolorosamente) Doente e bem doente, estou eu. Passo as noites, cheio de dores pelo corpo!

MARIA (Ironicamente) - Doente, doente... é  a escrita que vos cansa?  Para isso tendes vós forças e dedicação! Se desses papéis viesse algum dinheiro, que bem precisamos… mas não, destinam-se a ficar num armário esperando que o bolor os devore! Meu Deus, que falta me faz o meu saudoso pai, um verdadeiro homem…

FERNÃO MENDES PINTO - Vamos pôr ordem nesta conversa! O vosso problema é eu escrever ou a demora das nossas filhas?

MARIA - Se as nossas filhas embarcaram num barco... e andam perdidas em Lisboa, numa espécie de feira de loucura e abusos onde os lisboetas se divertem. Há soldados espanhóis, alemães e até o Papa… Em Lisboa bebe-se, dança-se, joga-se, rouba-se… acasalam-se homens com mulheres que nunca se viram… uma chafurdice pegada… rixas e mortes atravessam a cidade. Tenho medo, Fernão!

FERNÃO MENDES PINTO - Já vos disse que as nossas filhas são mulheres ajuizadas!

MARIA - Parais com vossas loucuras! A nossa Catarina, é terrível, sai a vós, arde de fome e febre de viver, tem as mesmas loucuras que vós!

FERNÃO MENDES PINTO - Parai com isso, mulher!

MARIA - A vossa cabeça ainda anda nas Índias e pelas Chinas! Cai-me tudo em cima! Nunca sabeis o que se passa nesta casa, se o trigo deve ser vendido, ou se o tanoeiro Brás se embebedou com o medo de ser arrebanhado para a tropa...

FERNÃO MENDES PINTO - Sossegai! A partir de agora eu prometo dar mais atenção à casa e à quinta (ele estende-lhe os braços e ela cede).

RITA (à entrada, com alvoroço) - Minha senhora! Minha senhora!

MARIA - As meninas estão de volta?

RITA - Elas vão chegar daqui pouco tempo, estão no carro do senhor Telmo Pais, conhece-o bem.

MARIA - Deus seja louvado!  (sai, ligeira)

FERNÃO MENDES PINTO - Vamos lá ordenar os papéis…

VOZ DE FERNÃO MENDES - «Desta breve informação que tenho destes léquios, se pode entender, e assim o cuido eu pelo que vi, que com quaisquer dois mil homens se tomaria e senhorearia esta ilha, com todas as mais destes arquipélagos, donde resultará muito maior proveito que o que se da Índia, e com muito menos custe, tanto de gente como de tudo o mais, porque somente do trato nos afirmaram mercadores com quem falámos, que rendiam as três alfândegas desta ilha léquia, um conto e meio de ouro, fora a massa de todo o reino, e as minas de prata, cobre, latão, ferro, aço, chumbo e estanho, que rendiam ainda muito mais que as alfândegas »

(Entram: Catarina, Joana, Maria e Telmo Pais. As filhas correm a beijar o pai. Fernão Mendes e Telmo Pais cumprimentam-se)

CATARINA - Obrigada, senhor Telmo Pais para nos ter recebido em vossa casa, eu adorei visitar a D. Madalena e o senhor D. João!

MARIA E FERNÃO MENDES PINTO - Muito obrigado, Telmo Pais, pelos cuidados com as nossas filhas!

TELMO PAIS - De nada, elas são adoráveis!

FERNÃO MENDES PINTO - D. João de Portugal anunciou já a sua hora de embarque?

TELMO PAIS - Esse também é o motivo que me traz à vossa presença, Fernão Mendes. Meu amo pede-me que vos dê conta do desejo de convidar-vos para uma ceia de despedida. D. João quer ter à sua mesa os amigos íntimos antes de partir.

FERNÃO MENDES PINTO - Mas há tropas que ainda não chegaram.

TELMO PAIS - Sim, el-rei D. Sebastião quer arrancar quanto antes do Tejo. Há estrangeiros que seguem diretamente dos seus países para o norte de África. Lisboa está irreconhecível com tantas e variadas gentes.

FERNÃO MENDES PINTO - Não me sinto capaz de atravessar o Tejo, sinto-me doente e além de tudo, estou apaixonado pelos papéis… O meu livro, A Peregrinação ganha corpo dia a dia.

TELMO PAIS - Francisco de Andrade confessou-nos que se sentiu arrebatado com a leitura das primeiras páginas.

FERNÃO MENDES PINTO - Exageros de quem nos estima! Além disso ainda não consegui escrever o mais difícil. Ainda nada disse sobre São Francisco Xavier! Daí o andar ansioso. Não posso morrer sem o fazer. Aquele homem tem de ficar eternamente marcado no livro! Como se sente o vosso amo prestes a embarcar?

TELMO PAIS - D. João de Portugal é aquele cavaleiro nobre e de virtudes imensas. Prepara-se para deixar o país e fazer a guerra à moirama muito o entusiasma. Mas a esposa, a D. Madalena vive inconsolável e isso quebra o mais forte e valente dos cavaleiros.

FERNÃO MENDES PINTO - Compreendo.

MARIA - Senhor Telmo Pais com vossa licença, nós retiramo-nos. (Mãe e filhas saem)

TELMO PAIS - Para D. Madalena têm sido noites de lágrimas. Por isso meu amo me impede de embarcar com ele.

FERNÃO MENDES - Certo, a vossa presença junto de D. Madalena é um bom consolo.

TELMO PAIS - A minha senhora  tem vivido horas de febre e delírio... Perdoai-me este desabafo… Que cenas se têm vivido ao abrigo daqueles tetos!

(Os dois homens calam-se. Simoa entra, faz vénia. Traz um alguidar com os alimentos para confecionar. Mexe na lareira. Os dois homens observavam a serva.)

TELMO PAIS (rompe o silêncio) - São horas de regressar, Fernão Mendes Pinto. Tenho o tempo contado.

FERNÃO MENDES PINTO - Dizei a D. João que estarei presente na ceia.

(Encaminhando-se para a saída. Entra o Tanoeiro, de cabeça entrapada).

FERNÃO MENDES PINTO - Mestre Brás… nós temos muito que falar…

TANOEIRO - Sim, meu senhor!

(Telmo Pais e Fernão Mendes Pinto saem).

TANOEIRO (comprometido) - Simoa…

SIMOA (de costas) - Que me quereis?

TANOEIRO - Entender-me convosco…

SIMOA - Ide para a vossa toca! Já está o mundo farto!

TANOEIRO - Naquela noite eu não estava consciente  do que fazia, mulher! Um homem bebe para esquecer, e nem sempre dá conta do vinho que bebe.

SIMOA - Estou mouca! (rindo-se) Quem não sabe beber vinho, bebe xixi!

TANOEIRO (humilhado) - ‘Tá visto que não quer falar mais comigo, não é verdade? (sem resposta e aproxima-se) Porque não pomos uma pedra nessa zanga?

SIMOA (explode) - Odeio bêbados, borrachos, homens que não respeitam a virtude e a fraqueza das mulheres, ouviu seu cacho de uvas?!

TANOEIRO - Fraca tu? Se não tivesse o pé ligeiro tinha morrido nas tuas mãos! Virtude? Com a tua idade ainda és virgem? Não me tomes por parvo!

SIMOA - Aiiiii! Querem ver? Já bebeste hoje? Já vieste atestado práqui?

TANOEIRO (cruza uma perna sobre a outra, desafiando o equilíbrio) - Estou sãozinho como um pêro, Simoa!

SIMOA - Pois ficai sabendo que nessas minhas partes (aponta as coxas) nenhum homem bateu semente!

TANOEIRO (abismado) - Na vossa idade?!

SIMOA (solta uma gargalhada) - E ele a dar-lhe! Como qualquer donzela prendada!

TANOEIRO - Meu Deus! Um homem não é bruxo nem adivinhão!

SIMOA - Animal! Selvagem!  Quisestes-me roubar a virgindade!

TANOEIRO - Nessa noite estava fora de mim… Juro-vos!

SIMOA - Cobardola! El-rei a chamar homens para a guerra contra os infiéis da nossa santa religião e você a brutalizar mulheres!

TANOEIRO - Não mistureis a bota com a perdigota, nem alhos com bugalhos. Uma coisa é ir para a guerra contra os mouros, outra coisa é sentir paixão por vós, tia Simoa!  

RITA (entra e fica admirada) - Por aqui, mestre Brás? Não vos fazia agora tu-cá-tu-lá com a tia Simoa!...

TANOEIRO - Não posso andar por onde quero e nem falar com quem me dá satisfação? É preciso ter uma autorização?

(Simoa solta uma gargalhada, é seguida pela outra serva e, por fim, mestre Brás ri também. De súbito aparece a dona da casa)

MARIA (num grito) - Que comédia é esta?

(Mutação)



ATO II
3° QUADRO

 (Noite de Dezembro de 1578. Fernão Mendes escreve alumiado por duas velas. Da quinta chegam-nos o ruído do vento e o uivar dos lobos)

FERNÃO MENDES PINTO - Malditos lobos! Este Inverno ainda nos comem os animais! (Ergue-se e dirige-se para fora) Simoa! Mestre Brás! Ponde mais lenha na fogueira! Afastai as feras do curral e das capoeiras! (Volta para a mesa, retoma a escrita)

VOZ DE FERNÃO MENDES PINTO - O padre Francisco Xavier costumava pregar duas vezes por semana, e, no final de cada um dos sermões, ao longo de dois meses, pedia aos fiéis que rezassem um Pai Nosso e uma Avé Maria pelos portugueses que andavam a espalhar a fé de Jesus Cristo por entre os mouros.

(Música sacra, e surge da penumbra o padre-mestre Francisco Xavier, envergando o hábito da Ordem)

FRANCISCO XAVIER (dirigindo-se ao público) - Meus irmãos, não vos peço nada. O que mais gosto é de converter as pessoas para elas poderem aproveitar o amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Um dia, converti um bonzo de Canafama que tinha grande influência na sua comunidade de tal forma que depois de ter adoptado a nossa religião, mais de quinhentas pessoas quiseram logo batizar-se. Aí apercebi-me que também havia bonzos que aconselhavam mal as pessoas e as assustavam. Bonzos houve que disseram às pessoas que se haviam de perder se se convertessem ao cristianismo. Chegaram mesmo a dizer-lhes que só o fizessem pedindo-me muito dinheiro em troca da conversão! dinheiro que me pediam e assim procuravam mostrar às pessoas que tudo o que eu dizia era mentira porque se fosse verdade eu dar-lhes-ia o dinheiro que me pediam. Mas Deus Nosso Senhor há de proteger-me de tanta difamação!

(Entretanto, foram aparecendo alguns bonzos, de crâneo rapado, trajando opas vermelhas. Discutem acaloradamente numa algaraviada ininteligível. E gesticulam, e dão corridinhas em redor da sala. O padre Francisco Xavier acende o turíbulo e espalha incenso. Mas entra o Bonzo Maior, este fisicamente avantajado, com um abanico, que tenta afastar o incenso)

BONZO MAIOR (avança para o Jesuíta e, depois de várias vénias, fala-lhe) - Permitis uma simples pergunta?

FRANCISCO XAVIER - Dizei.

BONZO MAIOR - Conheceis-me?

FRANCISCO XAVIER - Não. Não vos conheço.

BONZO MAIOR (volta-se para os irmãos, sorrindo) - “Bem pouco há que fazer com ele, já que não me conhece… (Faz nova pergunta ao Jesuíta) Tendes ainda daquela fazenda que me vendeste em Frenojama?”

FRANCISCO XAVIER - “Não respondo a coisa que não entendo, por isso fala mais claro, e então te responderei, porque se eu nunca fui mercador, nem sei onde é Frenojama, nem falei nunca contigo, como te havia de vender fazenda?”

BONZO MAIOR - “Parece-me que deves ter ruim memória.”

FRANCISCO XAVIER - “Já que me esqueci, lembra-me.”

BONZO MAIOR (com aspecto soberbo) - “Faz agora mil e quinhentos anos que me vendeste cem picos de seda, em que ganhei bom dinheiro.”

FRANCISCO XAVIER - “Que idade tens?”

BONZO MAIOR - “Cinquenta e dois anos.”

FRANCISCO XAVIER - “Ora pois se tu não tens mais que cinquenta e dois anos, como é possível haver mil e quinhentos anos que foste mercador, e me compraste fazenda? E se também o Japão não tem mais de seiscentos anos que é povoado, como pode haver mil e quinhentos que eras mercador em Frenojama, que naquele tempo, segundo parece, devia ser terra deserta?”

BONZO MAIOR - O que não sabes é que o mundo não tem princípio nem fim. Antes dessa vida já vivemos muitas outras. Quem tem boa memória sempre lhe fica lembrando o que fez.”

(A cena agora é descrita pelo autor, sendo mimada pelos religiosos)

VOZ DE FERNÃO MENDES PINTO - “O padre, respondendo-lhe a este seu falso argumento, lho desfez por três vezes, com palavras e razões tão claras e evidentes, e por comparações tão próprias e naturais que o bonzo ficou confuso.”

(Ao ouvirem-se as últimas palavras, acende-se um resplendor na cabeça de Francisco Xavier. Os bonzos recuam, assombrados. Mas o Santo continua a mimar a exemplar argumentação)

VOZ DE FERNÃO MENDES - “E neste tempo os bonzos todos, a fim de o embaraçarem, ou de o desacreditarem lhe perguntaram por coisas que o entendimento humano nunca imaginou, e ao lado destas, por outras serem tão simples e fáceis que qualquer pessoa lhes poderia responder com pouco trabalho. E algumas vezes tratavam também de matérias altas e de muito peso, em que houve muitas altercações de ambas as partes…”

FRANCISCO XAVIER (pede ao público) - Irmãos meus, oremos em conjunto para que o Senhor me inspire neste duelo com estes ministros do Demónio, perturbadores da lei de Deus.

(Durante momentos escuta-se o murmúrio das orações, terminando com o sinal da cruz)


BONZO MAIOR - “Padre, reparaste já que deus é inimicíssimo de todos os pobres, pois lhes nega todos os bens, fortuna e vida regalada com que presenteia os ricos e os poderosos?”

FRANCISCO XAVIER - Deus é inimigo dos pobres?!

BONZO MAIOR - Ainda não haveis reparado?

VOZ DE FERNÃO MENDES PINTO - “Esta falsa proposição lhes contrariou o padre, com razões tão claras, tão aparentes e tão verdadeiras, que os bonzos, ainda que lhe replicassem duas vezes, todavia como a verdade não tem resposta que tenha eficácia, lhes foi forçoso, apesar da natural ufania e presunção, condescenderem com o que lhes disse o padre.”

(Os bonzos trocam olhares entre si, e voltam-se para o Santo, movendo a cabeça, vencidos. Rompe um canto gregoriano. Francisco Xavier retira-se, iluminado)

(Mutação)  









ATO II
4° QUADRO

(Fevereiro de 1580. Maria cose junto da lareira. Catarina, debruçada na mesa, lê algumas páginas do trabalho do pai)

VOZ DE CATARINA - “Esta mulher, quando desembarcou neste Porto, o rei de Passarvão a foi buscar ao barco em que vinha, e a levou para a sua casa, e a agasalhou com a rainha sua mulher, e ele se passou para outro aposento longe dali, porque esta era a maior honra que se lhe podia fazer. A razão por que este recado veio mais por mulher que por homem, vem de um costume antiquíssimo dos reis destes reinos, desde o princípio, trataram as coisas de muita importância, e em que se requer paz e concórdia, por mulheres...”

MARIA (interrompe a costura e tenta despertar a filha da leitura) - Catarina! Acordai, menina! Quando vos debruçais sobre os papéis do vosso pai, pareceis uma tonta!...

CATARINA - Que quereis, senhora?

MARIA - Falar convosco, combinar os trabalhos entre mãos! Já deste fé da serva em que a vossa pobre mãe se transformou? Não queres cozinhar, nem queres cozer... Que vida é a vossa, minha filha?

CATARINA - Senhora, dizeis que não trabalho? Tendes má memória. Quem ajuda nas ceifas? No mês das vindimas, quem labuta no lagar? Quantos recados faço na vila...?

MARIA - Catarina, minha filha, não deveis lembrar esses serviços! Uma senhora deve ser prendada, ter as melhores mãos para os bordados e para conforto de sua casa. Deixai de ser criança e para com as brincadeiras na quinta. Sois uma senhora!

CATARINA (divertida) - Minha mãe sonha com um homem de linhagem para esta sua filha!

MARIA - Tenho horas em que duvido se nascestes senhora... tu és demasiado viril!

CATARINA (numa exaltação) - Senhora, eu nasci para viver as aventuras de Fernão Mendes Pinto! Combater pela dilatação de Fé e do Império! Dispersar mouros e turcos!

MARIA - Calai-vos, Catarina! Calai-vos malcriada! Respeitai a família dos Correias e dos Mendes!

CATARINA - Correr mundos e povos desconhecidos! Voar sobre as águas!... (Baila pela casa) Voar, voar...!

MARIA (grita, fora de si) - Catarina! Catarina, não me ouvis?

CATARINA (cai num cadeirão e sopra) - Voltei ao reino. (Noutro tom) Dizei, senhora?

MARIA - Na vossa idade bordava eu o enxoval para receber vosso pai!

CATARINA - Um homem com posses! Já reparastes que essa ideia não sai da vossa mente?

MARIA - Mas toda a mãe, digna desse nome, não deve esquecer o casamento das suas filhas. E sabe Deus os tormentos que passamos nos dias de hoje para encontrar um noivo com posses e dinheiro para uma donzela (esfrega o polegar no indicador para representar o dinheiro). Oh! A debandada dos homens para a Índia enche-nos de viuvez!... Os campos sem braços, as mulheres solteiras... No reino só as viúvas ricas conseguem os melhores partidos. Vede o senhor Francisco de Andrade que casou na vila com uma viúva riquíssima da nossa melhor fidalguia!

CATARINA - Senhora, tendes má memória e estais esquecida de muita coisa. Cultivar a terra é que dá de comer, foi assim que eu e a minha irmã fomos educadas, tal como a mãe. Já graças ao pai sei ler e escrever com muito gosto.

MARIA - Faltais à verdade, Catarina.

CATARINA - Oh minha mãe, sei muito bem o que vos digo!

MARIA - Sabeis, sabeis...

CATARINA - Mas aqui em casa a vossa vontade não estende só as garras para mim e para Joana (Olha-a bem de frente, altiva). Há outra pessoa que sofre ainda mais. Não adivinhais quem seja?

MARIA - Vosso pai sofre por minha culpa? (Ela não lhe responde e vai arrumando as folhas dos manuscritos). Dizei em quê, Catarina?

CATARINA - Quantas vezes discutistes com ele quando escrevia a sua Peregrinação? Já vos esquecestes que chegastes mesmo a ameaçar queimar todas as folhas que ele escreveu?

MARIA - Filha, avaliais os perigos que rondam esta casa?

CATARINA - Perigos? Que perigos?

MARIA - Sois uma cabeça no ar! (Segreda-lhe, medrosa) Eu bem tenho sofrido com as perguntas dos confessores sobre esta escrita do vosso pai. Os doutores da Igreja estão inquietos e temerosos com o que ele pode ter posto nestes papéis. Só eu e Deus conhecemos o tormento das minhas confissões. A Inquisição ronda por aí...

CATARINA - Senhora, Fernão Mendes Pinto tem lido partes inteiras da Peregrinação a muitos padres! Há meses esteve um dia inteiro em Vale Rosal a ler as partes da China e do Japão. E não era só para os irmãos portugueses da Companhia de Jesus. Havia a ouvi-lo dois padres espanhóis. Meu pai sabe muito bem o que escreve. Tende em conta os elogios e o entusiasmo do senhor Francisco de Andrade, o provedor da Santa Casa da vila!

MARIA - Deus vos oiça, Catarina! Deus vos ouça! Eles continuam a queimar tantos infelizes no terreiro do paço! E quando não os queimam, ferram-nos. (Noutro tom) Reparastes já como o vosso pai anda doente e alquebrado?

CATARINA - Tem setenta anos, mãe! Setenta anos de muito trabalho e tormentos. Há no seu corpo a vida de muitas vidas.

MARIA - Meu Fernão Mendes já não é o mesmo depois de ter acabado de escrever esta obra. Receio o que possa acontecer…

CATARINA - O Inverno castiga-o sempre. Sabeis muito bem como a carne é cheia de cicatrizes. Quando chega o frio, ele envelhece. Daqui por três meses, há-de vir a Primavera.

(Catarina vai colocar o manuscrito numa prateleira, junto de outros cadernos. Um momento sem palavras)

MARIA - Se tivermos a grande fatalidade de ele morrer… já destes conta de como esta vossa mãe ficaria com duas mulheres a seu cargo?

CATARINA - Senhora, não vos irriteis tanto comigo! Para a realização do sonho de um bom partido para vossas filhas deve bastar-vos a grande promessa que é a Joana. (Com insistência, para convencer a mãe) A minha irmã segue religiosamente o modelo de filha prendada. Cedo voltou as costas aos trabalhos na quinta e sό se sente feliz a viver na casa das melhores famílias da cidade. Não abandonou a dona Madalena de Vilhena, depois da morte de D. João de Portugal na batalha de Alcácer-Quibir. Há quantos meses ela não visita o Pragal?

MARIA - Vossa irmã, vossa irmã… Por minha vontade ia lá buscá-la!

CATARINA (carinhosa) - Não vos irriteis comigo, minha mãe. Respeitai a natureza que Deus me deu. Que ideia a vossa sobre os medos do pai!

MARIA - De noite bem oiço seus gemidos e até lhe enxugo as lágrimas que lhe escorrem pelo rosto.

CATARINA - A guerra de África, minha mãe, a guerra da África! As mortes do rei D. Sebastião e D. João de Portugal e da fina flor da nossa gente que ele tanto estimava. Os resgates que os mouros pedem ao rei D. Henrique… O nosso querido pai sente todos os sofrimentos que caíram em cima deste país! Temos um rei velho e sem filhos, os espanhóis rondam o nosso trono… (ouve-se o início do hino de Espanha) Não são razões mais do que suficientes para afligir um português digno desse nome?

MARIA - Mas esse negócios não dizem respeito à nossa família. Graças a Deus não tivemos ninguém na batalha de Alcácer-Quibir! (Noutro tom…) O que mais conta na vida é o dinheiro. (esfrega o polegar no indicador para representar o dinheiro) Foi sempre assim. Os que embarcam para a Índia não o fazem com a ganância do lucro? Não foi esse sonho que levou vosso pai para essas terras do fim do mundo?

CATARINA - Senhora, não sois casada com um qualquer… Fernão Mendes Pinto não é da mesma laia dessa gente que por aí anda.

MARIA (contrariada) - Tem coisas boas, tem coisas más… Foram os bons sentimentos que tanto elogiais que o levaram a perder uma tão grande riqueza! Mereceu a pena? De volta ao reino deram-lhe algum pago por tanta caridade e sacrifícios?

CATARINA - O meu adorado pai é um grande homem! Tão grande e diferente dos outros homens… e vós, mãe, sois incapaz de ver a sua verdadeira grandeza!

MARIA (enfurecida, agarra numa colher de pau da cozinha e faz menção de bater-lhe) - Catarina! Faltais ao respeito à vossa mãe?! (A filha enfrenta-a corajosa. A mãe hesita, começando a chorar) Todos nesta casa me querem enlouquecer! Ninguém me respeita, ninguém escuta as minhas razões!

SIMOA (que assistiu à zanga - a serva está envelhecida e desleixada, cabelos em desalinho e roupas sujas - exclama) - Valha-me Deus! Que desordem, minha senhora!

MARIA (descarrega a ira sobre a serva) - Tu também és culpada dos meus sofrimentos nesta desgraçada casa!

SIMOA - Que mal fiz eu, minha senhora?

MARIA - Põe os olhos no teu descuido, mulher! Esses cabelos, as nódoas que trazes nessa roupa! Foi para tanta porcaria que aceitaste o Brás como marido? Não te lavas, não te penteias, cheiras mal que até dás vómitos!... (gesto de apertar o nariz em sinal de mau cheiro) Porca, refinada porca! Nem pareces a Simoa da casa dos meus pais!

SIMOA (faz beiço e acaba por chorar) - Vós é que já não sois a mesma menina que andava ao meu colo!

(Catarina observa sem intervir. E nota-se a sua tomada de consciência da grande mudança operada nas pessoas lá de casa)

MARIA - Não me dês conselhos! Lava-te, lava-te primeiro! Agarra num sabão, enche uma selha de água e ensaboa-te bem! Com esse cheiro não tocas tu nas panelas nem na comida!

TANOEIRO (entra com um pequeno barril e,ao ver a mulher a chorar, poisa a vasilha) - Que barulheira é essa, Simoa?

SIMOA - Não são contas do teu rosário!

TANOEIRO - Porque estás a chorar tantas lágrimas?

SIMOA - As lágrimas são minhas!

TANOEIRO - Mas eu sou o teu homem!

SIMOA - A mim não me forças a falar! Se ameaçavas a tua antiga mulher, comigo isso não!

TANOEIRO - Olha qu’eu peço licença à senhora e parto-te aqui mesmo as trombas!

SIMOA - Atreve-te! Atreve-te! Se tivesses vergonha na cara, não levantavas a voz! Tu que ficaste com tanto medo quando o pessoal do rei andou por aί a arrebanhar tropa para a guerra de África!...

TANOEIRO (arma um manguito) - Olha… toma! Se me tivessem arrebanhado com uma lança nas unhas… estava agora morto na terra dos mouros como el-rei D. Sebastião! (Largos gestos) Não fui! Não fui! E disso não sinto remorsos nenhum!...

MARIA (explode, quebrando a colher de pau no tampo da mesa) - Calai-vos! Quero respeito na minha casa! Mais alto do que eu ninguém fala!

RITA (da porta) - O senhor Fernão Mendes Pinto está vindo do caminho do monte! Desceu já e traz o animal pela corda.

(Catarina sai, a correr. O tanoeiro pega no barril, coloca-o sobre as costas e retira-se. Simoa persegue o marido. Maria, exausta, senta-se, colocando a mão sobre o peito)

FERNÃO MENDES PINTO (entre abraçado a Catarina) - Morreu o rei D. Henrique!

MARIA - Ai meu Deus!

FERNÃO MENDES PINTO - Em Lisboa, receia-se a chegada do rei Filipe de Castela. Ele é um dos herdeiros do nosso reino. (Senta-se cansado) Dai-me um pouco de água.

MARIA (dando um copo de água) - E agora, Fernão Mendes Pinto…?

FERNÃO MENDES PINTO (bebe um golo) - Não temos um príncipe! Portugal fica à deriva. Filipe de Castela e os seus agentes têm uma vasta terra para negociar.

CATARINA - E D. António Prior do Crato? Ele é filho do infante D. Luίs.

FERNÃO MENDES PINTO - D. António tem por si o pobre povo desarmado e ignorante e meia dúzia de fidalgos e homens de Igreja. É muito pouco para se oporem à tempestade que se avizinha. Quanto à duquesa de Bragança, também pretendente, e ao duque, tudo indica que se vão aliar a Filipe de Espanha.

MARIA - Não há de uma alma cristã interessar-se com tudo o que está a acontecer nesta terra.

FERNÃO MENDES PINTO - Sossegai, sossegai… Afastai da cabeça toda esta agitação. Lisboa fica na banda de lá do Tejo.

MARIA - Mas é por vós, Fernão Mendes, por tudo o que vos possa acontecer. Sois tão conhecido, fala-se tanto no vosso nome... Essa gente não vos vai pôr de fora dos seus negócios... Acho eu.

FERNÃO MENDES PINTO (sorri) - Acreditais nisso? Que eles me queiram ouvir?

MARIA - Talvez quando tudo se arrumar, e tivermos um novo rei… os governadores paguem o que vos devem.

FERNÃO MENDES PINTO - Pouco espero de Portugal. Estou velho e desiludido para ter esperanças, mulher. (Aproxima-se) Abraçai-me (Maria obedece) E vós, Catarina (Fraterno, no meio de ambas) Com as duas e a Joaninha estou no meu reino. Lembro um velho rei que foi meu amigo e que tinha duas filhas…

MARIA - Mas devem-vos tanto dinheiro, meu querido. E nada possuímos para entregar como dote das nossas filhas.

CATARINA (desfaz o abraço) - Meu pai, li hoje tantas folhas do vosso livro! Amanhã acabo. Cada vez adoro mais o vosso livro.

MARIA - Catarina, permites que vossa mãe faça uma pergunta ao pai?

CATARINA (numa vénia) - Tende a bondade, senhora minha mãe.

MARIA - Fernão Mendes, se Filipe de Castela for aclamado como rei de Portugal e se ele vos oferecer uma remuneração avultada… não a aceitais?

FERNÃO MENDES PINTO (senta-se à mesa, passa as mãos pelo ventre e pergunta) - O que é o jantar… é que estou com muita fome! (Assobia de maneira a fingir que não ouviu a pergunta da mulher. Catarina tem um forte ataque de riso)

(Mutação)


ATO II
5° QUADRO

(Dia de São Pedro (29 de junho) de 1852. Tarde. Fernão Mendes Pinto está sentado num cadeirão junto da chaminé. Lívido e alquebrado, acomoda uma manta sobre os joelhos. Adivinha-se-lhe uma debilidade crescente)


TANOEIRO (aparece um pouco depois) - Que festejos, meu senhor ! Nunca vi tanta gente numa festa! Não imagina o número de barcos que acompanharam os navios reais. A música, os tiros… Que loucura meu senhor!

FERNÃO MENDES - Onde estão as meninas e a senhora?

TANOEIRO - Estão todos à rocha para ver as cerimónias. O rei Filipe de Espanha já deve estar a chegar. (Noutro tom, mais baixo) O senhor estava a dormir, dói-lhe o peito?

FERNÃO MENDES - Que dia é hoje?

TANOEIRO (gravado) - Dia de São Pedro. O rei Filipe ficou duas semanas em Almada. Dizem que fizeram grandes obras no Palácio da Ribeira para o receber. Ainda bem que o espanhol se foi embora. Eram tantos os fidalgos e tantos os padres, bispos e outros iguais a esses… Que loucura, meu senhor! Toda aquela fidalguia queria ser recebida pelo rei espanhol para pedir coisas. Não está certo, meu senhor! Os pobres e os infelizes eram afastados pelos soldados e os oficiais. Todo aquele que sofria de fome não tinha ordem de falar ao rei. Os senhores das terras e das casas é que tinham as portas abertas para os pedintes. Que pensa o senhor sobre isto? (Aproxima-se do amo, que adormeceu ) Oooh, Senhor Fernão Mendes… Adormeceu, o pobre…

(Ouve-se falar fora de cena. Chega Simoa)

SIMOA - Ó camarada! Estás aqui. Abalaste duma maneira, parecia que vinhas a acudir a um fogo.

TANOEIRO - Tantos barcos dos nossos pegados ao rabo do homem! Cambada de cães rafeiros a lamber o dono!

SIMOA - É o nosso novo rei! Rei Filipe de Portugal! Quanto maior amizade e carinho lhe mostrarmos, melhor será o seu governo.

TANOEIRO (pede silêncio) - Fala baixo, mulher! O nosso amo está a dormir.

SIMOA - Então mas se está a dormir, não ouve! Deixe-o descansar coitado.

TANOEIRO - Não é com barulho que ele há de descansar…

SIMOA (ignorando o TANOEIRO) - A sua vida está por um fio. Que Deus me perdoe, mas ele não chega vivo às vindimas! Está a gemas e caldos de galinha. Não engole uma fruta sequer... e precisamos de pelo menos 5 frutos e legumes por dia… (Ouve-se em francês excerto da publicidade que diz esta ideia) Convida-o) Vamos lá para dentro, camarada.

(Saem ambos, com passos cautelosos. A luz baixa, ficando dois focos a iluminar o escritor e o manuscrito, que está na prateleira)

VOZ DE FERNÃO MENDES: « Porque te afirmo que todos te mentiram, e fia-te de mim porque sou muito rico e não te hei de mentir como homem pobre. (Repete) Fia-te de mim porque sou muito rico e não te hei de mentir como homem pobre. (Quase o eco) Como homem pobre… pobre… pobre... pobre…

(Sobe um canto religioso, que vai servir de fundo musical à narração do escritor)

VOZ DE FERNÃO MENDES: «...Depois que os budistas lhe propuseram alguns argumentos, lhe quiseram provar por diabólica filosofia que Deus era o inimigo de todos os pobres, dizendo que lhes negava os bens que dava aos ricos, que isso era um sinal de que não os amava. Esta falsa proposição contrariou o padre Francisco Xavier, com razões tão claras, tão aparentes e tão verdadeiras, que os budistas, ainda que lhe replicaram duas vezes...»

(O canto sobe de intensidade por momentos, baixando depois para nova narração)

VOZ DE FERNÃO MENDES - «….No outro dia, logo que foi manhã clara, o capitão Duarte da Gama acompanhado de todos os mercadores e outros portugueses, organizaram uma reunião para se decidir como é que o padre havia de se apresentar nesta primeira visita com el-rei do Bungo, e por todos foi combinado que para homem de Deus ele fosse com maior aparato que pudesse ter, porque com isso os budistas passariam por mentirosos no que tinham dito sobre ele….»

( Separador musical. Atravessa a cena Francisco Xavier, ricamente vestido….)

«...O padre levava uma bola de chamalote preto sem águas, com uma sobrepeliz em cima...»

( Catarina entra na sala e aproxima-se do pai. Cessa a evocação)

CATARINA - Senhor meu pai….

FERNÃO MENDES (Olha-a por momentos ) - Que quereis de mim?

CATARINA - Sou eu, querido pai. Senti-vos mal? Quereis que se chame o médico?

FERNÃO MENDES (num mal estar) - Sanguessugas… Sanguessugas… Sanguessugas!... Acreditais que nas minhas veias há sangue para sugar? Sangue! Todo o meu sangue foi derramado pelas sete partidas do mundo!

(Pausa)

CATARINA (duvidosa) - Sabeis quem eu sou? Sabeis? Será que é capaz de dizer o meu nome?

FERNÃO MENDES - Sois Joana, a minha filha….

CATARINA - Reparai bem, meu pai.

FERNÃO MENDES - Sois Joaninha, a minha filha mais nova. (Noutro tom) Onde pára vossa irmã, a outra? Como é que ela se chama?

CATARINA - Catarina.

(Pausa)

FERNÃO MENDES - Tem o nome da rainha viúva, a que desprezou o certificado dos meus serviços prestados nas partes da Índia. Quando desembarquei estava ela na regência do reino. (Trocista) Fui recebido na corte, olhou para mim e para o meu papel e chamou um conselheiro para que me desse provisões como lhe pedi. Será que este conselheiro também morreu? Morreu de certeza sim. (Noutro tom) Se eu não tivesse recebido o dote do casamento com a vossa mãe… Morre-se de fome, de peste, na guerra… por ser judeu ou mouro… morre-se…(Desconcertante) Minha filha, acreditais que o vosso pai ainda está vivo?

CATARINA - O homem que escreveu a Peregrinação nunca mais morrerá.

FERNÃO MENDES - Assim não chego ao inferno pelos meus pecados.

CATARINA (pega numa toalha e limpa-lhe o suor do rosto) (Podemos trocar a toalha pela água mineral em spray da Axelle) - Sossegai. Porque não vos deitais?

FERNÃO MENDES - Vossa irmã conhece os meus papéis do princípio ao fim. Leu todas as folhas que tenho ali reunidas. Sabe de memória passagens inteiras. Tem mesmo uma memória de elefante! De todos cá de casa só ela, a minha Catarina, deu atenção e amor ao meu livro! (Confidencial, chama-a para que se aproxime) Ela já o salvou do fogo. Cá em casa queriam queimá-lo. Não sabíeis?

(Maria, Joana e Telmo Pais entram na sala, falando em voz baixa)

CATARINA (dirige-se para Telmo) - Senhor Telmo Pais, que bom terdes vindo, pois o meu pai está muito carecido da vossa presença. (Para Maria) Minha mãe, o pai fala sem tino… Falei-lhe e não me reconheceu.

MARIA - Valha-me Deus!

TELMO PAIS - Fernão Mendes, meu bom e leal amigo, como vos sentis? (O escritor olha-o sem palavras) Fernão Mendes… reconheceis-me?

FERNÃO MENDES - Sois...Telmo Pais.

TELMO PAIS - Como vos sentis?

FERNÃO MENDES - Teimo em viver neste reino de loucos.

MARIA (surpreendida) - Ele reconheceu Telmo Pais. Graças a Deus!

CATARINA - Meu pai esteve a troçar de mim! A chamar-me Joana!...

JOANA - E tu não percebeste, minha sabichona?

(Catarina vai sentar-se sobre uma almofada junto das pernas do pai, que lhe afaga os cabelos)

TELMO PAIS - Esse coração, essas forças… sentis algumas melhoras desde o último dia que vos visitei? Que vos diz o médico?

FERNÃO MENDES - Não consinto mais sangrias, meu bom Telmo. O tempo das minhas batalhas passou. Quero guardar com avareza o sangue que me resta.

TELMO PAIS - Eu percebo, meu senhor.

FERNÃO MENDES (Muda de assunto) - Contai-me o que vistes na vila com a visita de Filipe de Castela.

MARIA (desloca uma cadeira para que o visitante se acomode) - Sentai-vos, Telmo Pais.

TELMO PAIS (senta-se) - Que dias agitados vivemos na vila de Almada, Fernão Mendes!

FERNÃO MENDES - Ai sim?

TELMO PAIS - Aqui vieram todos os nobres do reino, dos que ainda estão vivos depois daquela desgraça vivida nos campos de Alcácer-Quibir. Triste procissão de interesses e de ambições, os destes nobres e membros da Igreja que renegam o nome de Portugal.

FERNÃO MENDES - Que desgraça…

TELMO PAIS (acena com a cabeça) - E se o meu fidalgo e amo e senhor Dom João de Portugal, que a morte arrebatou ao lado do seu rei, presenciasse tão degradante espectáculo...morria de amor pela pátria!

FERNÃO MENDES - Que notícias há de D. António?

TELMO PAIS - Diz-se que vive em França e que é hóspede de Henrique III. A repressão do conde de Santa Cruz nos Açores foi terrível. Graças a Deus, o nosso rei conseguiu fugir mais uma vez. Estranho destino deste príncipe: perde todas as batalhas… mas nunca morre.

FERNÃO MENDES - Isso já eu tinha reparado…

TELMO PAIS - Em Alcácer-Quibir foi cativo; na ponte de Alcântara fugiu; nas muitas casas em que se refugiou e, por fim na Ilha da Terceira, desapareceu como o vento. A poderosa mão do Senhor parece protegê-la nessa maré de desgraças.

FERNÃO MENDES - Tendes outras novas para me contar?

TELMO PAIS (Noutro tom) - A Duquesa de Bragança e o duque são nesta hora defensores de Filipe de Castela. Grandes benefícios e privilégios têm recebido do castelhano. Esses nobres e muitos outros… que sem o menor respeito esquecem o chão sagrado da terra portuguesa. Cristóvão de Moura teve tarefa fácil no negócio em que foi incumbido pelo real amo. Numa coisa estou de acordo com o filho de Carlos V: o reino de Portugal entrou na sua posse por três razões: herdou-o, comprou-o e conquistou-o. (enxuga as lágrimas do rosto) Pobre Portugal dos nossos heróis e dos nossos santos, Fernão Mendes.

(Pausa)

FERNÃO MENDES - E novas dos nossos amigos?

TELMO PAIS - Doloroso é dizê-lo, mas quase todos foram ao beija-mão do rei castelhano. Dizem que Francisco de Andrade não ficará só como provedor da Misericórdia. Outros e mais lucrativos cargos o esperam.

MARIA - É também um grande amigo da nossa família. Esperemos que não se esqueça de nós.

TELMO PAIS - Quase todas as famílias estão divididas. Até chegamos ao pecado de invejar a boa estrela dos nossos queridos mortos. Ao menos não tiveram de ver esta desonra. Feliz o meu saudoso Luís Vaz de Camões, que está enterrado na igreja de Santa Ana. Ainda o conheci moço e belo a frequentar a casa de D. Manuel de Portugal. Escritor e português honrado! Estimavam-se muito. Tudo gente tão bonita que, só de recordá-la, o nosso coração sangra de saudade.

MARIA - Viestes à nossa casa para um longo e doloroso desabafo, senhor Telmo Pais.

TELMO PAIS - Senhora, e quantas mais nesta vila pode um português encontrar?

MARIA - Dona Madalena de Vilhena está melhor da sua doença? Esperamos visitá-la em breve.

TELMO PAIS - Estranho que pareça, ela parece diferente nos últimos dias…

MARIA - Graças a Deus! Vimo-la tão fora de si quando perdeu o D. João de Portugal. Passaram quatro anos…

FERNÃO MENDES - Dissestes… estranho que pareça?

TELMO PAIS - Nos tempos que se seguiram à batalha de Alcácer-Quibir… todos duvidaram dos nossos desaparecidos estarem perdidos para sempre… A dúvida sobre a morte de el-rei D. Sebastião percorre ainda o reino. Quase toda a gente acredita mais na sua existência do que na sua desgraça. Quanto a meu amo, D. João de Portugal, uma vez chegada a folha dos cativos, não restam hoje dúvidas de que ele morreu.

FERNÃO MENDES - Sim, vosso amo morreu na batalha. Mas qual a razão da vossa estranheza?

TELMO PAIS - Queria eu dizer que Dona Madalena de Vilhena saiu do isolamento onde estava recolhida, é estranho. Os dias passam e ela anda melhor. Eu próprio que tanto a aconselhei a sair daquele funesto lugar estremeço de tal liberdade.

 FERNÃO MENDES - A dor profunda altera o nosso julgamento, Telmo Pais.

TELMO PAIS - Decerto… Mas eu explico as minhas dúvidas. Entre os frequentadores da nossa casa temos como mais regular o nobre cavaleiro, Manuel de Sousa Coutinho.

FERNÃO MENDES - Pertenceu à ordem de Malta, estando cativo em Argel. É muito versado na língua latina. (Boceja)

TELMO PAIS - Dona Madalena de Vilhena e o fidalgo passam horas de animado convívio. Leem poemas, discutem temas religiosos… esquecem-se do mundo. (Receoso) Deus me castigue se a minha desconfiança é falsa, mas…

MARIA (ansiosa) - Dizei. Por que razão não desabafais? Bem conheceis a honra dos nossos ouvidos.

TELMO PAIS -Tudo se encaminha para uma suspeita terrível!

MARIA - Qual?

CATARINA (num grito) - Que Dona Madalena de Vilhena gosta do senhor Manuel de Sousa Coutinho?!

MARIA - Catarina! Que insolência, minha filha!

JOANA - Minha irmã é muito atrevida!

TELMO PAIS (cerra os olhos, tomba a cabeça sobre os punhos) - Estamos todos fora da razão!

CATARINA (observa o pai, toca-lhe a mão) - Pai… Pai… Ouvistes o que dissemos? (Com espanto) Adormeceu!

(Mutação)




ATO II
6° Quadro

(Noite do 8 de Julho de 1583. A mesa foi transformada em catafalco. O corpo de Fernão Mendes Pinto envolto na roupa de São Francisco. Quatro altos tocheiros ladeiam a câmara ardente. A luz das velas bruxuleia. Cinco mulheres rezam vestidas de preto. São as duas servas e a família. Os galos da quinta anunciam o novo dia)

SIMOA – A quantas casas foi o meu Brás?

MARIA – O teu homem foi de manhã anunciar à vila o falecimento do amo. Bater às portas a altas horas da noite não é de aconselhar.

SIMOA – Quando a Rita deixou cair o copo e veio cá para fora aos gritos … passava da meia-noite.

(Rita, a serva, rompe a chorar em altos gritos)

MARIA Cale-se, mulher! Não chore dessa maneira! Até me dá nervos!

(Pausa)

SIMOA – A senhora podia tomar um caldo. Ontem esteve todo o santo dia em jejum. E as meninas?

MARIA – Não quero nada.

(Pausa)

CATARINA – O meu querido pai pediu para ser sepultado na igreja de Santa Maria do Castelo. A sua vontade deve ser respeitada, minha mãe.

MARIA – A cerimónia do enterro é feita pelo senhor provedor da Santa Casa da Misericórdia.

CATARINA – Eu falo com o senhor Francisco de Andrade.

(Pausa)

SIMOA – Vamos ter muitas saudades do nosso querido amo. Perdoava todas as ofensas… era mãos rotas para os pobres. Por seu feitio tão generoso foi roubado nas Índias.

(Rita chora muito, de novo)

MARIA – Rita! Parai com esses gritos! Pareceis sofrer como viúva ou como filha! És uma serva! (Para a filha, e fala agora noutro tom) Quando falaste com o teu pai, que te disse ele sobre os papéis?

CATARINA – Senhora, não se canse com esses trabalhos…

(Rita chora agora mais calma)

MARIA (observa-a) – Perra! (Para a filha) Não respondes à pergunta que te fiz, Catarina?

CATARINA – Não se preocupe, senhora, com os trabalhos que o meu pai deixou.

MARIA – Preocupo-me, sim.

CATARINA – As suas últimas vontades serão cumpridas.

MARIA – Minha filha, tudo o que está escrito naquelas folhas cegam-vos aos perigos que corremos. Desperta, Catarina! Não te destes conta que esses papéis estavam repletos de heresias e que são um perigo mortal para a nossa família?

CATARINA – Que temores, mãe! Sem faltar ao respeito que vos devo… começo a duvidar da saúde do vosso tino!

MARIA – Sois muito donzela, filha, e pouco conheceis a maldade humana. Até nisso sais ao teu pai, tinha horas em que mais parecia uma criança. Brincava contigo como se ainda estivesse na idade da inocência. Pobre Fernão Mendes, meu coração de menino tontinho! (chora)

CATARINA – Não levais em conta os elogios do senhor Francisco de Andrade sobre o livro escrito pelo pai? Não medis a amizade e o respeito que vos merecia Telmo Pais, senhor de muitas leituras e íntimo de Luís Vaz de Camões? Naquela noite em que meu pai narrava coisas da China, Japão e outras povoações, em casa de D. Madalena o seu segundo marido, o senhor Manuel de Sousa Coutinho foi bem claro: “ Fernão Mendes, tendes um tesouro dentro de vós, o qual não deve morrer convosco. Escrevei tudo quanto passastes e vivestes nessas terras e mares para a maior glória da nossa gente.”

MARIA – Filha, quando começou a correr pela vila de Almada que o vosso pai estava a escrever sobre os seus trabalhos na Índia… não encontrei mais sossego. Mudei de confessor vezes sem conta, Catarina! Todos faziam perguntas que iam dar aos papéis do vosso pai. Queriam saber o que escrevia sobre o padre Francisco Xavier, que opinião tinha da Companhia de Jesus, que dizia dos selvagens convertidos à nossa Fé. Foi uma das razões pela qual me obrigou a não ouvir a missa do frei Francisco Foreiro. Mas nas outras igrejas da vila todos os reverendos repetem as mesmas perguntas… (noutro tom) E convosco, minha filha, quando vos ajoelhais para vos ouvirem em confissão? (A filha não responde) Nossa Senhora permita que todos os meus temores sejam infundados!

(Longa pausa)

SIMOA – A senhora e as meninas deviam repousar um pouco e tomar um caldo.

MARIA (ergue-se, cansada) - Vamos sim, vamos repousar um pouco.

(Simoa acena para que Rita saia também, saem todas menos Catarina)

VOZ DE CATARINA – “E como António de Faria de sua natureza era muito curioso, trabalhou por saber desta gente que nações habitavam o sertão daquela terra e donde procedia a origem daquele grande rio; e eles lhe disseram que a origem do rio procedia de um lago que se chamava Pinator, que distava a leste daquele mar, duzentas e sessenta léguas, no reino de Quitirvão o qual lago estava cercado de grandes serranias…”

CATARINA (aproxima-se do corpo e toca-lhe nas mãos) - Pai meu senhor, há uma pergunta que nunca vos fiz. Perdoai-me a ousadia. António de Faria é Fernão de Mendes Pinto, o valente corsário fostes vós, meu pai?

(começo da analepse)
(a cena ganha uma luz estranha, ouve-se um canto gregoriano que se transforma lentamente numa melodia oriental, lentamente Fernão Mendes Pinto, senta-se na mesa, volta-se para o público, abre o vestuário, transformando-se em António de Faria. Sorri e acabam por aparecer três ou quatro figurantes, formando um bando)

VOZ DE FERNÃO MENDES – “E ao pé delas ao longo da água, havia trinta e oito povoações, das quais treze eram grandes, e as que restavam muito pequenas, mas que só em uma destas grandes, de nome Xincaléu, tinha uma tamanha mina de ouro. Pelo dito dos moradores da terra, que se tirava cada dia dela um bar e meio de ouro, isto é uma meia tonelada de ouro. Por ano, a valia da nossa moeda seria de vinte e dois milhões de ouro, na qual quatro senhores tinham parte. Eram tão cobiçosos que andavam permanentemente em guerra uns com os outros.”

(Nas paredes da sala projetam-se imagens da Peregrinação. Surgem figurantes. Uma noiva e sua comitiva entram mimando um bailado. Pífaros, tambores e sinos. Dois velhos chins, miseravelmente trajados, de longas barbas brancas e descalços, aparecem, assustados)

1° VELHO(apontando o bando de António de Faria) “Grande novidade deve ser esta com que Deus nos visita, e queira Ele por sua bondade que não seja esta noção barbada daqueles que por seu proveito e interesse espiam a terra como mercadores e depois a salteiam como ladrões”

2° VELHO – “Aqui nesta aldeia não há mais que redes e paraus de pescar, com que pobremente nos sustentamos… “

(O bando de Fernão Mendes-António de Faria afasta os velhos chins e dirige-se ao bando da noiva. Bailado da perseguição, acabando esta por ser capturada. Um grito da jovem faz cessar a música)

ERMITÃO (avança do fundo) - “Qual a causa para que o vosso povo há muito tempo atrás, quando tomaram Malaca pela cobiça, mataram os nossos sem piedade? Vão negar que quem conquista não rouba? Quem força não mata? Quem oprime não tiraniza? Pois estas coisas se dizem de vocês e se afirmam em lei de verdade.”

(Um canto de igreja interrompe a fala do Ermitão, e aparece o padre mestre Francisco Xavier que atravessa a cena espalhando incenso. No lado oposto da noiva-prisioneira aparece o noivo)

NOIVA (solta-se e declama para o Noivo) - “Se a natureza desse licença para ir ver a tua face, sem isso se tornar nódoa no meu viver, crê que eu voaria para ir beijar os teus pés, mas já que eu vim da casa do meu pai para te vir buscar aqui, vem-me tu buscar onde já não estou, se mal me vês na escuridão desta noite...
(atravessa de novo a cena o padre-mestre Francisco Xavier, que corta o enlevo dos noivos e a intervenção da noiva começando a orar)

FRANCISCO XAVIER – “Oremos irmãos meus em Cristo Nosso Senhor  pelas vitórias dos nossos soldados sobre a Terra e sobre o mar… “

(A luz foca no rosto de Catarina, ficando os restantes na penumbra)

CATARINA – “Esta noiva, segundo soube, era a filha do juiz de Colém, e era casada com um filho do Chifu, capitão de Panduré”

(Toda a cena começa a ser sacudida por tempestade. Relampagos, trovoes, vento, ruído de mar agitado. Cruzamento de focos luminosos no primeiro plano oculta o fundo do palco, aparecendo agora Fernão Mendes, António de Faria e os companheiros, rotos e famintos, ao mesmo tempo que mimam a descrição)

VOZ DE FERNÃO MENDES - “ … Como a noite era escura, estava frio, o mar agitado, o vento forte, as águas cruzadas e a força da tempestade muito forte nada nos restava senão a Misericórdia de Nosso Senhor, por quem chamávamos aos gritos e a chorar, mas por causa dos nossos pecados não éramos merecedores de Ele nos fazer esta mercê…”

(A tempestade acalma, os náufragos estão por terra esfomeados e exaustos. Fazem como se estivessem a arrancar plantas da terra e a comê-las. Um raio de Sol aparece, ouvem-se as gaivotas e um peixe cai nas mãos dos quatro náufragos. Milagre! Os quatro náufragos reúnem-se num cacho de súplica)

FERNÃO MENDES PINTO – “Senhor Jesus Cristo, eterno Filho de Deus, peço-te pelas dores da tua sagrada paixão que não nos censures a desconfiança em que a miséria da nossa fraqueza nos tem posto… Deus meu… te peço…”

(Abre-se a parede do fundo e entram máscaras carnavelscas, rebentando fitas com estrelinhas luminosas. Os quimonos vermelhos e negros contrastam com um longo dragão de papel verde-dourado, que acaba também por aparecer. Todas estas figuras coleiam para o primeiro plano, ocultando Fernão Mendes-António de Faria e os companheiros de aventuras. Mas eles voltam pouco depois, de novo na mó-de-cima, fardados e armados, soltando gritos guerreiros)

FERNÃO MENDES – “ Eia! Senhores e irmãos, a eles! Com o nome de Cristo! Antes que as armas deles os ajudem!”

(Voltados para a plateia, movem as espadas como se cometessem uma abordagem, ouve-se o tinir das espadas e tiros, mas para o azar deles são obrigados a recuar)

FERNÃO MENDES – “Ah! Cristãos e senhores meus, se estes lutam pelo Diabo, esforcemo-nos nós em Cristo, que não há de desamparar-nos.”

(Os quatro avançam de novo sobre o adversário invisível. Do outro lado aparecem os dois velhos agora mascarados de velhos chineses: quimonos coloridos e chapéus cónicos)

1° CHINÊS (ao ouvido do outro) - “Pergunta a essa gente se têm rei e como se chama a sua terra, e a que distância ela estará da do Chim”

2° CHINÊS (cheio de experiência) - Conquistar esta terra tão grande dá claramente a entender  que entre eles há muita cobiça e pouca justiça. Homens que por negócio voam por cima do oceano inteiro para obterem o que Deus não lhes deu, ou a pobreza neles é tanta que tudo lhes faz esquecer a pátria, ou a vaidade e a cobiça é tanta que negam a Deus e aos seus pais”

(Euforia de cor e de movimentos. As máscaras e o dragão de papel dominam de novo a cena. Os quatros corsários aparecem agora ostentando colares de oiro é de pedrarias. Cantam e gesticulam ébrios de felicidade. Pouco depois as vozes e a música são absorvidas pelo choro de um Menino de doze anos, que lhes aparece na retaguarda).

FERNÃO MENDES PINTO (para e volta-se, e os companheiros fazem o mesmo) - “Porque choras menino? De onde vem essa tristeza e o que a trouxe? A quem pertence? Responde-me, não ouves?”

MENINO - “Era do meu pai que não tinha sorte nenhuma e que teve o azar que tu lhe roubasses em menos de uma hora tudo o que ele ganhou em mais de trinta anos...”

FERNÃO MENDES PINTO (consola-o) - “Não chores, criança. Eu prometo dar-te abrigo e cuidar de ti como meu filho.”

MENINO (liberta-se dos afagos) - “Não cuides de mim, embora me vejas menino, não sou tão parvo. Roubaste-me o pai e agora achas que te vou deixar cuidares de mim?...”

(permanecem em cena todos os figurantes, movem-se lentamente, ganhando um aspecto plástico. A luz foca em Catarina)

(Fim da analepse)

CATARINA (narra o que aconteceu depois) - Os papéis que o meu pai escreveu, “dando conta de muitas estranhas coisas que viu e ouviu no reino da China, Sião e em muitos outros reinos do Oriente” foram entregues ao senhor Francisco de Andrade, que ocupava o lugar de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Almada. O pai tinha uma grande confiança neste senhor que além de escritor e poeta obteve dos reis espanhóis grandes cargos como Cronista-mor e Guarda-mor, ele também aconselhou Fernão Mendes Pinto a dividir o seu trabalho por capítulos. Sugestão aceite pelo meu pai.

(Pausa)

CATARINA – Minha mãe estava certa sobre aqueles papéis não serem infundados. Alguns da Igreja mostravam-se inquietos com a sua existência. Mas entre estas opiniões, corriam boatos que neles só havia mentiras e falsidades. Daí a pergunta: Fernão, mentes? Minto.

(Pausa)

CATARINA – Os anos passaram e decidimos dar os papéis, retocados pelo senhor Francisco de Andrade, a uma instituição de caridade – Casa Pia dos Penitentes de Lisboa. Mesmo ainda nesse lugar o manuscrito continuou a ser consultado por estudiosos, vários padres.... A primeira tradução da Peregrinação foi feita para espanhol pelo padre Maldonado. E ´só em 1614, o livro foi impresso e lançado no mercado, ou seja trinta e um anos após a morte do meu pai! No dia 15 de janeiro de 1583, três meses antes do meu pai falecer, o meirinho da vila entregou-nos um documento que reza assim: (Lê o texto enrolado num papel que desdobra) “El-rei Felipe, nosso senhor, faz mercê a Fernão Mendes Pinto de dois molhos de trigo cada ano, em dias de sua vida, atendendo aos serviços nas partes da Índia”. (Sorri, e fala com o público) Sabiam que com três molhos de trigo anuais se coze três pães por dia ? (Ri) Portugal no seu melhor, nunca soubemos recompensar os portugueses de valor! Quando se recompensa o português ou já morreu ou então a recompensa é tão miserável que mais valia ficarem quietos!



(Cai o pano)








[1] mamposteiro = procurador; recebedor de esmolas para cativos

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